O bem bolado do carnaval curitibano
O fotógrafo Mário Nery organizou durante quarenta anos o Baile das Bem Boladas, festa ousada do carnaval de Curitiba
Quem olha pela primeira vez para o fotógrafo Mário Fernandes Nery não imagina que ele foi, durante quatro décadas, um dos artífices das noites mais quentes que o carnaval curitibano já experimentou.
De gestos e fala contidos e estrutura corporal miúda, é mais fácil imaginá-lo atrás do balcão da loja de canetas tinteiro da Rua XV de Novembro em que, adolescente, começou a trabalhar no início dos anos 1960. Ou na oficina de impressão dos jornais Paraná Esportivo e Gazeta do Povo, onde era o responsável por fazer os clichês metálicos usados nas antigas prensas tipográficas daquele tempo. Mesma época em que conheceu sua vocação e métier que o mantém até hoje: fotógrafo profissional. “Sempre me preocupei com o lado comercial da fotografia. Minhas fotos, eu fiz para vendê-las”, admite.
Festa que movimentava Curitiba nos anos 1970 e 1980 era destaque na Tribuna do Paraná
Causos
Alvará saía após desfile prévio para a Polícia Federal
O Baile das Bem Boladas era um evento que movimentava a imprensa e a parte festiva da sociedade local. O jornalista Osvaldo Tavares de Mello, o Vadico, ex-diretor do jornal Tribuna do Paraná, conta que tão concorrido quanto o baile era o coquetel de apresentação das candidatas uma semana anterior. “Era mais importante do que a festa em si, mais de quinhentas pessoas. Os convites eram disputados a tapa”, lembra. O fundador Mário Nery lembra que a preparação da festa levava um ano e era acompanhada diariamente pelo público na coluna Triboladas. Ele conta que nunca teve problemas com as “autoridades” por conta de uma artificio criado nas primeiras edições. “A Polícia Federal era quem dava a licença. Então, a gente fazia um jantar na semana anterior para fazer uma prévia do desfile com algumas das meninas. Aí conseguíamos o alvará”, se diverte. Nery garante que nunca se envolveu com nenhuma das candidatas nas quatro décadas do concurso. “A gente separava as coisas. Tinha que resistir as tentações. Pode não parecer, mas era um trabalho sério”.
Virou um faz-tudo. Batizados, casamentos, discursos políticos. Fotografou as visitas dos ditadores Costa e Silva e Ernesto Geisel à cidade. Nos anos 70, foi a lente oficial de colunistas sociais como Toniolo, Charles, Dino Almeida... Visibilidade que o tornou o mais requisitado fotógrafo das “festas de bacana”. Na década seguinte, era o fotógrafo oficial de grupos “da terceira idade” em viagens internacionais. “Rodei o mundo. Só a Israel foi onze vezes, conheço cada passo da Via Sacra”, brinca. “A fotografia, esta profissão linda, me proporcionou tudo isso. ”
Assim, é mais fácil imaginar Nery carregando sua grande mala de alumínio, onde cabiam as cubas de revelação e o ampliador, do que comandando nas madrugadas a festa profana do carnaval curitibano. A história mostra, no entanto, que de 1970 a 2010, Nery foi um dos responsáveis pela organização do Baile das Bem Boladas, a festa obrigatória dos domingos de carnaval de então.
A lenda das Bem Boladas nasceu no jornal Tribuna do Paraná. Foi ideia do chefe de oficina Barriga. Ele convocou os irmãos fotógrafos Mário e Jurandir Nery para organizar um “contraponto hétero” ao Baile dos Enxutos, o concorrido baile gay que acontecia no Clube Operário. A festa premiava a mais bela “pássara da noite curitibana, as cortesãs que trabalhavam nas dezenas de boates que funcionavam em Curitiba, região e litoral. Mesmo com a temática ousada, a sociedade curitibana da época, sempre tida como muita conservadora, adotou a festa.
Políticos, empresários, boêmios em geral a frequentavam e levavam as esposas, para conhecer um ambiente que era mais comuns aos homens da época. “Era disputadíssima, todo mundo queria ser jurado”, recorda. O sucesso dos primeiros eventos na Sociedade Batel obrigou a organização a procurar locais maiores.
“É injustiça dizer que o curitibano não gosta de carnaval. A prova foi a longevidade da Bem Bolada ou o bloco Garibaldis e Sacis, hoje. Se fizer bem feito, o povo vai e gosta”, avalia. Único remanescente do grupo que criou o evento-lenda, Nery se diz um ex-folião. “A formula se esgotou e deixou de ser atração. A cidade e a sociedade mudaram. A internet mudou o imaginário das pessoas. Mas é assim, cada coisa e pessoa tem seu tempo”, filosofa.
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