As festas dissolutas
09.04.2004 | Ó Seu Oscar/Tá fazendo meia hora que a sua mulher foi embora/Um bilhete deixou/O bilhete assim dizia/Não posso mais eu quero é viver na orgia” (Ó Seu Oscar, samba de Wilson Batista e Ataulfo Alves lançado por Ciro Monteiro no Carnaval de 1940)
Orgias. Há as conformistas e as rebeldes. Disso se depreende graus variáveis de devassidão. Uma escala de explosões histéricas e catárticas, que são respostas a acúmulos de abstinência ou repressão (sexual sobretudo). Mas há outros ingredientes também. Exibicionismo, crueldade, sadismo e festins da imaginação, para citar alguns.
Burgo Partridge teve muito pouco tempo para armazenar tantas informações sobre orgias e produzir seu único livro, uma história cronologicamente linear de farras sexuais. Desde as que foram pouco mais que excessos em libações até as exponencialmente dissolutas. Viveu só 28 anos. Um ataque cardíaco cortou-lhe abruptamente a vida em 1963. Nada que encontre qualquer explicação genética. Sua mãe, Frances Partridge, morreu em fevereiro passado com 103 anos.
Frances foi mulher de Ralph que antes se casou com a pintora Dora Carrington, que amava o escritor Lytton Strachey, que por sua vez era homossexual e amava Ralph. Lytton morreu em 1932. Meses depois Dora Carrington matou-se. Ralph casou-se com Frances Marshall. Todos faziam parte do chamado grupo de Bloomsbury, reunião de escritores, artistas e intelectuais que tinha como estrelas Virginia Woolf, E.M.Forster e John Maynard Keynes.
De berço Burgo trouxe a curiosidade intelectual. O posfácio do livro assinado por Henrietta Garnett, que foi mulher dele e com quem teve uma filha, Sophie Vanessa, esclarece que ele estudou em Oxford, adorava viajar e tinha interesse por temas variadíssimos. Inclusive orgias.
Burgo começa pela Grécia. As festas para Afrodite eram uma loucura. Dionísio virou sinônimo de dissipação. Os gregos dão solenidade a androginia e a celebram. Demétrio de Falero, governador de Atenas tinha “orgias com mulheres e amores noturnos com rapazes”. Tingia o cabelo com “um tom duvidoso de loiro e usava maquilagem”. Mas os gregos entendiam que “o prazer sexual sem limites não levaria a satisfação de ninguém”.
Os romanos mudam o padrão das orgiais. Introduzem perversões, crueldades mas também a elaborada e alegórica coreografia das bacanais. Vênus era ao mesmo tempo guardiã dos casamentos respeitáveis e padroeira das meretrizes. Roma conheceu o sadismo séculos antes do Marquês de Sade.
Augusto tinha uma predileção obsessiva por virgens. Tibério era sádico e sexualmente depravado. Insuperável foi Calígula que inspirou a façanha de Bob Guccione, dono da revista Penthouse, que conseguiu produzir um filme pornô inspirado no imperador interpretado por atores consagrados como o vetusto John Gielgud e Peter O’Toole. Ainda muito novo Calígula estuprou a própria irmã, Drusila. Burgo suspeita que as orgias romanas alcançaram tal grau de degeneração que escapar “um suspeito odor de desejo de morte”. Ah, sim. Ainda houve Príapo cujo “falo estupendo” batizou o priapismo, apoteoses de ereção.
O livro salta de Roma para a Idade Média quando depravação invade mosteiros e conventos. Henrique III, bispo de Liège, teve 65 filhos ilegítimos. John Burchard, mestre de cerimônias pontificiais escreve numa carta sobre “estupros, atos incestuosos cometidos no Palácio de São Pedro, coisas infames infligidas a adolescentes e a meninas”.
Daí em diante o que o livro de Burgo Partridge tem de melhor são perfis de devassos que acendem as contradições entre o puritanismo e o pesado decoro da era vitoriana e o surgimento de bordéis de flagelação, tráfico de virgens e adolescentes e o crescimento geométrico da prostituição.
Sir Charles Sedley é um desses personagens. Depois de um jantar em julho de 1663 ele despiu-se “assumiu todas as posturas da lascívia e da sodomia que se possa imaginar”. Insultou as Escrituras, bradou uma convocação de genitálias femininas, “lavou o pinto no vinho” e depois bebeu à saúde do rei.
Entram em cena dois personagens fundamentais para uma histórias de orgias que se preza: Giacomo Girolano Casanova Seigalt e o Marquês de Sade. Casanova era exibicionista. “Não era agradável nem normal”, conclui Partridge depois de relatar a cópula entre Casanova e um corcunda “(enfrentando dificuldades que ele pormenoriza com a habitual atenção médico-anatômica)”. Sobre Sade não há nada que já não se saiba de outros histórias do homem tantas vezes punido por “práticas devassas inqualificáveis”.
Toda a esmagadora condenação da luxúria como pecado foi inútil para deter as orgias. Já no século XVIII surgem as críticas a hiprocrisia. Geoffrey Gorer, biógrafo de Sade, bate-se contra a obscenidade da caça e contra a gula pronográfica. Matar raposas e comer queijos em putrefação são atos vistos com condencesdência. Já o sexo...Partridge desmonta com facilidade o sofisma da argumentação.
Na claustrofobia espiritual da era vitoriana vicejou a prostituição. Os números eram alarmantes mas com certeza exagerados. Na Londres de 1857 com seus 2,2 milhões de habitantes existiriam 80.000 prostituras. Em 1951, menos de 100 anos depois elas seriam 10.000 numa Londres muito mais populosa. Os números não batem. Se é plausível que cada prostituta atenda 15 clientes por semana a freguesia teria que ser maior do que toda a população masculina da cidade, incluindo bebês de colo.
Legenda dessa era foi Elizabeth Crouch, nascida em Devonshire, que como prostituta com o nome de Cora Pearl fez carreira na França. Cora “tinha enorme talento para excentricidades voluptuosas”. Mas não era bonita, nem agradável e tinha um sotaque fanhoso e com ele despejava palavrões aos borbotões.
O capítulo do século XX é pequeno. Fala sem grandes detalhes de um rocambolesco personagem: Grigori Iefimovitch “Rasputin”, nascido em 1871 na Sibéria, mas que entra em cena na vida pública em 1904. Rasputny em russo significa “devasso”. Mas o que é marcante em Rasputin é sua quase pitoresca megalomania. Adestrava meninas para o sexo e dizia que isso não era pecado. “Não, minha criança, não é pecado: nossa carne vem de Deus e podemos empregá-la livremente”.
No turbilhão de orgias relatado por Partridge sobra a impressão de que nesse campo não se fez nada de novo de sua morte para cá. A pornografia escancarada nas bancas de jornais, ou nas video-locadoras, e onipresente na Internet, banaliza o prazer às custas de altas doses de servidão feminina e grossura masculina. Às torpezas, acrescentaram-se novas.
Burgo Partiridge conta sua história sem declarada simpatia pela causa das orgias. Ao contrário. Aqui e ali reprova excessos, aponta a exuberante esterilidade de certos vícios. Mas ele é inteligente o bastante para não se enroscar em preconceitos.
O Woody Alllen que é eterno personagem de Woody Allen diz que sexo a dois é muito bom, mas a cinco é fantástico. E num de seus filmes se pergunta: “Sexo é sujo?”. E ele mesmo responde: “Só quando se faz direito”.
”Uma História das Orgias”, de Burgo Partridge. Tradução de Manoel Paulo Ferreira. Editora Planeta; 228 páginas; R$ 39,90.