BD - (Bondage e Disciplina)
Votan
"As únicas liberdades às quais os seres humanos são
sensíveis são aquelas que jogam 'o outro' numa servidão
equivalente. E, aliás, como se sabe, uma paixão incondicional
pela liberdade certamente provocará no mundo, e bem
depressa, conflitos e guerras não menos incondicionais."
Jean Paulhan
Agora, transportemos o pensamento acima para um relacionamento a dois e a mistura é completamente explosiva.
Coação erótica
"A força não faz parte do contexto do sadismo ou do masoquismo, nem faz parte do fetichismo, da dominação ou da submissão. Mas é uma atividade normal e corriqueira. Faz parte do dia-a-dia das pessoas. A força é parte da relação de poder, mas no BDSM o poder não é tomado, é concedido. E não há sequer um adepto do BDSM que não se sinta, de alguma forma, fascinado por esta relação." (Delmonica).
A atitude de segurar ou restringir o(a) parceiro(a) durante o sexo é tão velha quanto o mundo. Um número incalculável de espécies segura ou imobiliza o(a) parceiro(a) durante o ato sexual. Escorpiões, aranhas, leões e alguns macacos têm um complexo jogo de imobilização e sujeição erótica durante o acasalamento. Mas não podemos assumir que estes animais têm atividades BDSM. Este é um jogo elaborado e executado exclusivamente pelos humanos.
Um aspecto aparentemente contraditório do BDSM é a coerção erótica.
O(a) submisso(a) que deseja viver uma relação BD, em seu sentido de escravidão e disciplina, aceita e, portanto, torna consensual, a condição de 'escravo'. Leve-se em consideração que para atingir esse ponto, a relação, o conhecimento mútuo, o entrosamento e a maturidade entre os parceiros deve estar em um patamar elevado. Ou seja, tornar-se BD requer tempo. Pois só o tempo trará o conhecimento (associado ao autoconhecimento), e só o conhecimento levará, neste caso, à consensualidade específica do BD.
Explico melhor: quando o desejo de possuir ou ser possuído vem à tona na relação é preciso que fique claro que a consensualidade aqui assume um caráter definitivo. O(a) 'escravo(a)' é uma propriedade, portanto faço com ele o que quero, pois ele aceitou a condição de ser possuído, de ser meu. Por outro lado, assumo um voto extremo de confiança que me foi dado (porque sabe que o conheço, porque tem confiança em minha experiência, em minha técnica, em minha habilidade para conduzi-lo em um mergulho de confronto consigo mesmo). Confia em minha habilidade de conduzi-lo de maneira sadia em momentos em que emergem possíveis carências ou problemas com a auto-estima; confia em minha sensibilidade para quebrar suas barreiras e no meu potencial para cuidar do que é meu.
Explico estes detalhes pois sempre pensamos no 'escravo' sendo forçado ou obrigado a uma atividade contrária ao seu desejo, e por fazer sob força, ou recusar-se a obedecer, é castigado.
Coação erótica é baseada em consentimento mútuo. Mas, como disse, uma consensualidade definitiva, explícita no momento em que se aceita a condição de 'escravo' e 'dono', e implícita a partir daí. Onde o que valerá será o conhecimento que um tem do outro, dos desejos, dos limites e do respeito entre parceiros.
Aí temos um paradoxo. Se é baseada em consentimento mútuo, como acreditar que alguém está obrigando alguém a fazer algo "forçado"?
A resposta é que a fantasia é um dos ingredientes mais importantes para o BD, e o(a) dominador(a) sensível tem a responsabilidade de tornar a cena o mais real possível. Já o 'escravo' deve corresponder de maneira comprometida com o jogo, pois mesmo numa posição de submissão ele é fator atuante, e deve ter consciência disto para manter o clima do jogo. Cabe ao dominador controlar e modificar a grande quantidade de variáveis que existem no complexo jogo da dominação e posse. O inusitado, o surpreendente, o erótico, o temor, são variáveis básicas que o(a) submisso(a), em contrapartida, deve ter a habilidade de deixar que tomem conta de sua mente, bem como a fantasia de acreditar na situação proposta pelo dominador.
A coação erótica é uma forma singular de atingir profundamente os mecanismos de prazer do ser humano. E, por ser profunda, precisamos estar atentos às reações do escravo, pois seus sentimentos e suas dificuldades devem ser respeitados.
Estar BD ou ser BD?
Não encontramos, freqüentemente, em comunidades BDSM, grupos que vivam situações de BD no sentido literal da palavra: bondage como escravidão e disciplina).
Encontramos, sim, práticas de BD em festas ou rituais.
Ou seja, ninguém é BD; pessoas podem estar em situações de BD por determinados períodos de tempo. O que já não acontece no DS (Dominação e Submissão). Pode-se ser DS 24 horas por dia e pode-se estar em situações de DS.
No mundo atual, optar por viver uma situação em que devemos nos portar e agir como escravos 24 horas por dia é irreal. Até porque para um dominador conhecer cada vez mais e melhor seu 'escravo' ele precisa dos momentos onde não se está BD, para concatenar as fantasias, saber do outro, ter o feedback do que o outro busca, o ajuste. Este ajuste é contínuo, para que a quebra de barreira, que é um dos ingredientes constantes no BD, assim como a coação, possam acontecer de uma maneira segura, para que ambos tenham sempre novos elementos para serem trabalhados, conversados, para o próximo momento em que se 'estará' BD.
Podemos estabelecer cenas ou períodos de tempo determinados em que situações de escravidão podem ser aplicadas: um fim de semana, um dia, uma cena em uma Play Party. Mas não uma situação de escravidão permanente. Até porque dentro da cultura SM, o Bondage está quase sempre associado à disciplina. Onde o prazer de castigar para corrigir é mútuo. De quem imputa e de quem recebe o castigo.
Popularmente, Bondage está associado com restrição de movimentos, com o uso de cordas, algemas e uma infinidade de aparatos que visam a imobilização do(a) submisso(a). E, através da imobilização, pode-se aplicar castigos e medidas de disciplina.
Tolher movimentos desde os mais remotos tempos de nossa civilização representa uma imposição da vontade do senhor para com o submisso. Era assim nas galés romanas, onde remadores eram escravos presos aos remos; depois, na Idade Média, com os escravos africanos e a desumanidade dos navios negreiros e o trabalho forçado tanto na Europa como no novo mundo.
Disciplina
Na comunidade BDSM a disciplina e os castigos advindos como corretivos pelas faltas são os objetivos de muitos dominadores e submissos.
Os dominadores disciplinam para treinarem seus escravos e vivenciarem o que lhes dá prazer (dominar), e estes para agradarem seus donos e, de uma maneira simplista, vivenciarem situações que lhes causem prazer. O ato de se colocar um submisso em seu colo e aplicar palmadas nas nádegas como forma de disciplina (aliás, a mais básica e antiga) , atravessa pelo menos 3 aspectos importantes dentro do BDSM, passa pelo BD, onde se está aplicando um castigo para corrigir uma falta, passa pelo DS no dipolo do dominador(a) - submisso(a) e passa pelo SM no ato físico de provocar a dor pelas palmadas. Dissociá-los? Não há como.
Podemos intuir, então, que não existe BD exclusivamente. Mas, sim, que BD está contido dentro da filosofia do DS e do SM, onde BD é meio, e não fim. Meio de se atingir propósitos ou fronteiras. Meio de humilhação.
"Poucos são os dominadores que não sonharam possuir um personagem Sadeano como Justine. Mas nenhum(a) submisso(a), que eu saiba, desejou ser Justine. Não em voz alta, com esta altivez do gemido e das lágrimas, com esta violência conquistadora, com esta avidez pelo sofrimento e com esta vontade feita de uma tensão que leva ao dilaceramento e à desintegração."
Porque aí estaríamos falando de ficção, o que, certamente, terminaria em patologias e, portanto, em uma realidade contrária à filosofia do BDSM, que é o erotismo saudável e a realização de fantasias com segurança.
Realidade x ficção
Dentro da literatura de Sade temos a vítima, não o escravo ou o submisso. E, a partir do momento que a vítima se identifica, tem prazer, aprecia (como em Filosofia na Alcova, a personagem Eugénie), passa para o grupo dos libertinos e começa a ser iniciada na filosofia. A virgem Eugénie, em sua ansiedade, fala à Senhora de Saint-Ange: "Oh, minha boa amiga, achei que jamais chegaria, tanta a pressa de estar em seus braços...".
Eugénie ficará apenas dois dias com a Senhora de Saint-Ange, e esta acha o tempo curto, ao que Eugénie replica: "Ah, se não souber de tudo ficarei... Vim aqui para instruir-me e só irei embora quando for sábia".
Um dos maiores perigos dentro do BD é um(a) dominador(a) ou submisso(a) novato ler a famosa "História de O", de Dominique Aury, e acreditar que aquela situação irreal e inverossímil deve ser o seu modelo de dominação ou que todos os dominadores serão Sir Stephens e todas as submissas serão "O's" ou Justines de Sade.
"Leio a história de O como se fosse um conto de fadas (todos sabem que os contos de fadas são os romances eróticos das crianças), como nesses castelos que parecem completamente abandonados, mas onde, entretanto, as poltronas com seus couros, os tamboretes e os leitos de colunas não têm um grão de poeira e onde já encontramos as chibatas e os chicotes; eles aí estão, como se estar aí fosse próprio de sua natureza. Não há suspeita de ferrugem nas correntes, nem de umidade nos azulejos de todas as cores." Jean Paulhan
Estas cenas são irreais. Não existem no dia-a-dia dos envolvidos com o BDSM.
Relacionamento?
A sinergia do relacionamento, qualquer que seja ele, faz com que limites, anseios, frustrações e desejos devam ser conversados, expressos e explicitados. Ninguém tem uma "bola de cristal" para adivinhar o que se passa na cabeça do parceiro.
E ninguém põe a entrega ao outro acima de si próprio. Para dominar, exercer ou elaborar uma cena de punição, assim como para ser punido ou participar de uma cena de escravidão e disciplina, deve existir segurança, consensualidade e sanidade.
Não deixa de haver grandeza e, inclusive, alegria em abandonar-se à vontade de um outro (como acontece com os apaixonados e os místicos) e em ver-se, enfim!, aliviado de seus prazeres, interesses e complexos pessoais.
Alguém pode então lembrar-se de masoquismo. Seja, não é mais que acrescentar ao verdadeiro mistério um mistério falso, de linguagem. Que quer dizer "masoquismo"? Que a dor é ao mesmo tempo prazer, e o sofrimento, alegria? Pode ser. Dizem os masoquistas, trata-se realmente de uma dor, mas que estes sabem "transformar" em prazer; trata-se de um sofrimento do qual se desprende, por alguma química cujo segredo eles possuem, uma pura alegria.
Termino este texto de Bondage & Disciplina me apropriando do trecho de um conhecido, se não for "o mais conhecido" livro sobre BD, "A história de O":
"Uma singular revolta ensangüentou, no correr do ano de mil oitocentos e trinta e oito, a tranqüila ilha de Barbados. Cerca de duzentos negros, tanto homens como mulheres e todos recentemente promovidos à liberdade pelos Decretos de março, vieram uma manhã pedir ao seu antigo senhor, um certo Glenelg, que os retomasse como escravos. Foi feita a leitura do caderno de queixas, redigido por um pastor batista que os acompanhava. Em seguida, engajou-se a discussão. Mas Glenelg, fosse por timidez, por escrúpulos ou simplesmente por medo das leis, recusou-se a se deixar convencer. Por isso, a princípio foi gentilmente empurrado, e depois massacrado com toda a sua família pelos negros que nesta mesma noite voltaram às suas cabanas, às suas tagarelices e aos seus trabalhos e rituais de costume. O caso pôde ser rapidamente abafado graças às diligências do Governador Mac Gregor, e a Libertação seguiu seu curso. Quanto ao caderno de queixas, nunca mais foi encontrado."