Chantal Dalmass
Causa Mortis
"A dor me invade como um saca-rolhas. O primeiro golpe é violento e abre um buraco em minha carne frágil. Em seguida, braços robustos imobilizam meu corpo inerme para que a broca de ponta brilhante gire, escave e volte um pouco - bendito retrocesso -, ouso sentir alívio, a haste intrusa se acomoda com folga no túnel recém-aberto. Penso que talvez até me acostume e consiga viver empalada deste desconforto.
Não, não, a dor. Lá vem ela de novo, abrindo caminho à força, perfurando meus músculos inchados, esgarçando minha pele ávida de uma certa calma.
Como pode doer tanto assim?
Como pode doer até não poder mais e não poder mais e não poder mais...
Como pode? Quanto tempo é até não poder mais?
Dias atrás alguém me disse: "Quem leva um fora morre". A morte suave e serena, quem me dera. Encostar a cabeça, fechar os olhos e descansar em paz. Nada disso, caro amigo, quem leva um fora vive e agoniza, sangra moribundo e tem de continuar vivendo.
Até quando? Quanto tempo ainda até o não poder mais?
Tento barganhar com a dor. Negociar prazos, impor limites. Vamos estabelecer certos parâmetros, está bem? Afinal, minha senhora, que coisa mais antiquada, percebe-se um cheiro forte de bolor, pó-de-arroz e rapé. Esta dor tem cara de dama antiga - rubor, mancebo, rapariga, sobressalto -, não se sofre mais deste jeito hoje em dia.
Tempos de Aids, Net, palmtops e topless.
Dias de sexo virtual, ciência, alta tecnologia, fibra óptica e lógica.
Época de Prozac, Viagra, Xenical, muito laser e silicone.
Ótimo, madame, então temos um acordo.
Ai! Bruxa velha, trapaceira!
Dor de saudade, dor de tristeza, dor de raiva.
Dor.
As mulheres o amavam. E isso deveria ser escrito em negrito, as iniciais maiúsculas, pois era uma verdade tão absoluta quanto o Teorema de Pitágoras, o Princípio de Arquimedes ou a Teoria da Relatividade. E, tal como qualquer preceito científico, sempre fora assim. Sem trabalho, sem esforço, o amor das mulheres fluía para a sua boca naturalmente como o leite morno escorrendo farto do seio da mãe. Ele se alimentava do amor das mulheres e nada dava em troca.
É claro que era gentil com elas, ele as apreciava de verdade, ainda que não chegasse a distinguir uma da outra; as mulheres eram o seu ambiente, o cenário, a terra fértil onde ele se erguia, glorioso, e reinava tranqüilo.
Eu mal o conheço. Sei apenas que o rapaz tão simpático e com modos de bom moço tem um lado noir e gosta de fazer sofrer. Causar dor - lato sensu.
Sei que tem pêlos lisos no peito e é macio como um gato, que é grande e absolutamente delicioso, que fica lindo de azul, que usa uns óculos cujo desenho da armação não combina com o seu rosto, que tem um jeito de olhar que me deixa mole e eu, quase liquefeita, não paro de tremer na sua presença.
Sei tão pouco sobre ele. Se prefere o frio ou o calor, a casca ou o miolo do pão, destilados ou fermentados... Água? Será abstêmio? Com que então me embriaga sem jamais saciar? É ousado ou cauteloso, tem manias, é vaidoso ou é modesto o meu amor?
Gosta do meu perfume?
- Ah, que cheiro gostoso! - dizia ele, como a sentir-se tonto com tanto encanto, e não havia uma só mulher que não se deixasse seduzir pela carícia do cumprimento que tinha a doçura envolvente de um abraço.
Meninas de marias-chiquinhas, senhoras de cabelos grisalhos, moças bem resolvidas, gatas de músculos definidos, garotas inocentes, prostitutas experientes. Novas, velhas, lindas, feias, magras, gordas, brancas, pretas, verdes, roxas, cor-de-rosa... As mulheres sorriam, baixavam timidamente os olhos e se apaixonavam.
Dia após dia ele ampliava as fronteiras do seu império e cada nova conquista tinha gosto de primeira vez.
"Hum, que delícia de perfume!", foi o que ele disse, fechando os olhos e inspirando com força, mexendo um pouco a cabeça. Depois soltou devagar o ar, ficou me encarando por intermináveis instantes, a sobrancelha esquerda levantada formando um V, curioso, como se pretendesse saber tudo a meu respeito. Cereja, morango ou framboesa? Sei lá, não importa o sabor, eu me transformara numa taça de gelatina: trêmula, vermelha, brilhante, pedindo para ser comida em grandes colheradas.
Ele me devorou de uma bocada e - guloseima de digestão rápida - me esqueceu logo em seguida.
Nada sobrou, absolutamente nada. Nenhuma marca de batom, nenhum bilhete, nenhum guardanapo sujo, nenhuma meia desfiada. O que quer que tenha havido entre nós perdeu-se no ar como uma nuvem sutil do meu perfume francês. Sem pistas, sem rastros. Assim... Evaporou.
Mas o cheiro dele ficou entranhado em mim e se faz notar a cada gesto que faço. Quando levanto os braços para prender o cabelo sinto o seu cheiro na minha pele, tomo banho e esfrego o corpo todo com uma bucha bem áspera, depois me lambuzo de cremes e loções, mas ele continua lá.
O líquido branco com que ele encheu minha boca ainda molha meus dentes e eu sinto o seu gosto ligeiramente ácido.
Sinto a força das suas mãos se fechando ao redor da minha cintura, sinto o peso delas e ouço ainda o som dos tapas estalando alto no silêncio.
A sua respiração quente na minha nuca ainda sinto, seu peito maciço comprimindo minhas costas, o suor escorrendo entre os meus seios doloridos dos seus beijos violentos.
Ah, sim, maldito, sinto tudo ainda, sinto arder os vergões vermelhos e as marcas dos seus dedos em minhas coxas.
Escuto o barulho dos aviões zunindo bem acima de nossas cabeças, nós dois, apenas mais um casal de adúlteros em um quarto de motel perto do aeroporto. A dor vai e vem, em ondas, eu ainda grito e enterro minhas unhas no travesseiro de aluguel enquanto ele me arreganha e outro avião aterrissa.
Já me esquecendo antes mesmo de sair de dentro de mim ele, enfim satisfeito, se lavou, se vestiu e se foi.
É, ele me deixou lá sozinha, saiu primeiro para não levantar suspeitas.
A nossa paixão tão forte desfez-se na noite como o aroma de um perfume falsificado, comprado sem nota fiscal. Não sobrou mesmo nada.
Mas como?
Se eu ainda sinto tantas coisas?
Se eu ainda sinto tanta dor?
Ele não achava que explorava as mulheres. Não prometia nada. Nunca as enganava. Se elas pulavam no seu colo daquele jeito, era por livre e espontânea vontade. Está certo que fosse amável, que sempre conseguisse identificar um traço interessante - e elogiá-lo -, mesmo na mais sem graça representante do sexo feminino, ou que fizesse o comentário sobre o perfume como um ato automático, ao dar com uma mulher pela primeira vez.
Era engraçada a maneira como elas todas, sem exceção, se derretiam quando ele mencionava o perfume.
Empresárias, diplomatas, policiais.
Aeromoças, professoras, deputadas.
Enfermeiras, copeiras, balconistas.
Babás, dançarinas, vigaristas.
Tolas todas. Todas elas.
Não havia virtude, erudição, conta bancária, necessidade ou posição que as protegesse de si mesmas, criaturas carentes de atenção.
Ele já nem conseguia disfarçar um certo tédio e ultimamente vinha sendo mais econômico em seus galanteios, pois dava trabalho administrar tantas possibilidades.
Era casado e tinha uma vida familiar convencional e regrada. Obedecia ao calendário oficial de aniversários, Dia das Mães, Dia dos Namorados, Natal e outras datas com os protocolos de praxe. Nunca poderia ser acusado de negligência por esquecer um aniversário de casamento dos pais, errar a idade dos três filhos de sua secretária ou deixar passar em branco as 87 primaveras da vovó. Uma memória prodigiosa e a agenda exclusiva para festas e assuntos pessoais constantemente atualizada, com anotações minuciosas - tipo, cor, tamanho - sobre os presentes oferecidos, faziam dele o queridinho da mamãe, o marido modelo, o patrão ideal, o genro que toda sogra pediu a Deus.
Com igual rigor controlava sua vida extraconjugal e traía a esposa regularmente. Estabelecera um esquema de horários, álibis e alternativas e mantinha-se estritamente fiel aos seus métodos, de modo a poder se dedicar ao seu esporte favorito.
Não saía mais de uma vez com uma mesma mulher, não dava presentes, não deixava nada por escrito, só andava de táxi e pagava sempre em dinheiro. Marcava encontro nos motéis - conhecia até a cor dos lençóis e o tipo de iluminação das suítes de pelo menos uns dez estabelecimentos -, chegava e ia embora sozinho. Não comia, não bebia, não fumava, quase não falava durante o sexo.
Era violento nas carícias, dava tapas, agarrava-as pelos cabelos e divertia-se com o olhar de espanto e o ar de confusão estampado no rosto das mulheres. E elas, que esperavam um comportamento compatível com a idéia que faziam dele, surpreendiam-se gritando de dor, chorando de gozo e pedindo mais.
Além da dor, é humilhante sofrer assim. Sinto raiva de mim por não conseguir deixar de desejá-lo com cada célula do meu corpo.
Idiota, pensei que ele quisesse estar comigo de novo, tentei me aproximar, e ele apenas me pediu que tivesse paciência.
"Devagar, precisamos ter calma, minha querida, sou um homem casado. Você também tem a sua vida, sua família, por favor, tome cuidado. Vamos esperar um pouco, está bem?"
Eu esperei. Esperei, esperei, esperei. Agora já não espero, sei que ele nunca virá. Entretanto, não posso suportar a idéia de nunca ter significado nada para ele. Demorei a entender e mesmo assim não aceito. Preciso explicar a ele, tenho de fazê-lo compreender os meus sentimentos.
Elas raramente causavam problemas. Algumas, às vezes, insistiam, debatiam-se - peixes teimosos com o anzol enfiado nas bocas -, querendo burlar as regras, mas logo sossegavam, mesmo porque ele era bastante criterioso na escolha de suas companhias.
Suas mulheres eram belas. Não apenas bonitinhas de rosto e corpo, não. Tinham algo marcante, que chamasse a atenção, como olhos muito expressivos ou mãos de dedos longos e unhas bem cuidadas, até mesmo um detalhe que quebrasse a perfeição do conjunto o atraía, uma voz grave e rouca, seios grandes, um nariz fora das proporções clássicas.
Loiras, ruivas, morenas... Preferia as mulheres naturalmente sensuais, do tipo que parece ter aprendido a andar de salto alto pouco depois do seu primeiro aniversário, daquelas que carregam um par de meias com costura ou um decote até o umbigo com a classe de uma embaixatriz.
Altas ou mignons, peso proporcional. Todas elas tinham o seu charme, ah, pés delicados, cintura fina combinada a uma bunda grande e ondulante, cabelos compridos, uma boca gostosa. Ele tinha poucas restrições taxativas, mas não disfarçava sua antipatia por pernas curtas, barriga flácida, pescoço e braços grossos. Agora, havia um item fundamental, condição indispensável para que uma mulher se tornasse uma candidata à sua cama: a aliança. Larga, vistosa, tradicional.
Na maior parte das vezes, uma conversa ligeira já era suficiente para que ele se decidisse por ir em frente ou esquecer o assunto. Mas era imprescindível que a moça fosse casada; quanto mais fortes os vínculos familiares, quanto mais conhecido o sobrenome, quanto mais exposta publicamente, tanto menores eram os riscos.
As esposas profissionais representavam o primeiro grupo, do tipo que acumula uma jóia por ano de matrimônio, que comemora bodas disso e daquilo e que não pretende aposentadoria por tempo de serviço.
As mães, as filhas e as noras de alguém eram ótimas. As cunhadas e as primas, boas, mas não tanto. As netas eram perigosas, geralmente estavam à procura de um pretexto para exercer a sua rebeldia.
No time das mulheres de carreira, as médicas e executivas eram razoáveis, as senhoras vereadoras e prefeitas eram admiráveis, mas perdiam longe para as "Vossas Excelências". As juízas eram iguaria rara, Dom Pérignon safra especial; tal qual um champanhe sublime, elas - geladas - estouravam e borbulhavam, faziam cócegas no nariz e subiam depressa.
Ele, que era amado pelas mulheres e não amava nenhuma, chegava a sentir pelas juízas uma certa ternura por lhe proporcionarem momentos de intenso prazer. Cavalgar uma Excelentíssima, fazer seus cabelos de rédeas, penetrá-la com força e ferir-lhe as ancas.
Aquela última fora magistral! Talvez só por isso ele estivesse lhe dando um pouco de corda, aceitando os versos e as cartas apaixonadas que ela lhe enviava. Tinha uma caligrafia elegante, a Meritíssima, e usava mesmo um perfume delicioso. Os trajes sóbrios, as pérolas corretas e os sapatos de salto médio ocultavam uma alma de prostituta. Vossa Excelência era surpreendente. A Meretríssima.
Vou vê-lo hoje. Depois de cinco meses de lenta agonia, finalmente poderei olhar dentro dos seus olhos e saber de que cor eles são; passei todo esse tempo imaginando-os azuis, mas bem podem ser verdes ou acinzentados. Vamos nos encontrar às seis horas na seção de livros jurídicos da Mega Cultural do Shopping Plaza Centro. Depois talvez nos sentemos no bar da livraria e tomemos um café, como velhos amigos.
Quantas vezes já estive aqui entre estes livros, quantas fantasias malucas passaram pela minha cabeça enquanto folheava e fingia ler um texto legal. Não agüentei esperar e cheguei muito antes. Andei pelo shopping, subi e desci todas as escadas rolantes, entrei em todos os banheiros para conferir o cabelo, a maquiagem, a roupa. Estou sem calcinha e tão excitada que sinto uma umidade constrangedora entre as pernas. Então vim para a livraria e me refugiei atrás das prateleiras de livros infantis. Não quero que ele adivinhe a minha ansiedade, vou deixá-lo chegar e só me aproximar depois de alguns minutos, quem sabe até fazê-lo esperar um pouco, para variar.
De onde estou tenho uma ótima visão do nosso ponto de encontro. Há um conjunto de sofás onde poderei me sentar caso não consiga controlar os tremores que costumam me atacar quando estou diante dele. É injusto alguém ter assim tanto poder sobre outra pessoa. Mas eu conheço bem a injustiça, ela é a minha vida - horas e horas diárias de injustiça enfeitadas com algumas palavras em latim.
Que pena eu não ter filhos, li todos os livros do balcão destinado a crianças em fase de alfabetização. Falta pouco para as seis e eu gostaria de ir de novo ao banheiro, mas não quero perder a sua chegada. Resolvi que vou me atrasar dez minutos, se for capaz de me conter e permanecer aqui. Dez minutos, tão pouco tempo...
Ele cruzou a porta de entrada e vem caminhando pelo corredor central. Tem um andar felino, deslizante, parece um leopardo, não, um imenso tigre de patas de veludo. Está vestido como eu gosto, de azul e gravata, os cabelos mais curtos e óculos novos.
Estou tremendo, preciso dar um jeito nisso. Enfio a cara num livrinho de rimas em inglês e me pergunto que estranhos fenômenos determinam que nos apaixonemos pelo sujeito A e não por B ou C. Outra coisa que me intriga é isso acontecer quando a gente não está disponível, como se um Cupido safado resolvesse acertar a sua flecha de modo a causar o maior estrago possível e desfazer um sistema ordenado e eficiente.
Minha vida era perfeita. Meu marido adorado, meu trabalho, uma posição de respeito na sociedade, alegrias, regalias, convites, reverências. Ainda tenho tudo isso, mas estou louca. Acho que mereço isso e mais um pouco. Acho que mereço mais. Quero mais. Quero aquele homem.
Ele vira devagar as páginas de um grande volume de capa marrom. No mesmo corredor, há uma moça consultando o fichário eletrônico e fazendo anotações.
Vou esperar até que ela se vá ou que ele mude de lugar, não quero que nada atrapalhe nosso reencontro. A garota está debruçada sobre o tampo do terminal para poder escrever, usa uma saia bege de malha e o tecido elástico se cola às suas nádegas como uma segunda pele. Não consigo ver-lhe o rosto, só os cabelos castanhos encaracolados pelo meio das costas. A marca saliente dos contornos da calcinha sob o pano esticado e a inclinação do corpo mudando o peso de uma para outra perna num rebolado lento formam um quadro indecente, tanto mais porque ela parece não se dar conta de sua atitude provocante.
São seis e quinze e nós três parecemos atores de um filme de Claude Chabrol, a imagem capturada num instante de angustiante imobilidade.
Ah, finalmente um pouco de ação.
Ainda segurando o livro marrom, ele dá alguns passos em direção ao fim do corredor. Pára ao lado do terminal eletrônico, mostrando a intenção de usá-lo. A moça morena endireita o corpo e cede-lhe espaço em frente à máquina, dizendo que ainda tem trabalho a fazer. Ele passa o livro pelo visor do terminal para verificar o preço e digita alguma coisa. Enquanto espera, a moça remexe em seus papéis e se atrapalha com as alças da bolsa.
Ele aperta outras teclas, pede a caneta emprestada à moça e se concentra nas informações do arquivo. Então desvia o olhar das letras luminosas que piscam na tela e, com a caneta ainda colocada sobre um bloquinho de notas, vira-se para a mulher, inspira profundamente e lhe diz que seu perfume é delicioso.
A juíza faltou ao encontro. Foram tão eloqüentes as cartas que ela enviara para o seu escritório que ele a julgara ansiosa por uma segunda oportunidade. Também ele bem que gostaria de expor seu caso à Meritíssima e arrancar dela um veredicto. Ele concluiu que não se importaria de esperar um pouco, talvez o champanhe ainda não estivesse na temperatura ideal...
O que não queria dizer, absolutamente, que ele devesse recusar um canapé suculento como aquela jovem advogada da livraria. Um petisco, a moreninha, ótimo para abrir o apetite.
Nos dias que se seguiram ao encontro malogrado, a juíza deu ordens à sua secretária, recomendou-lhe que adiasse algumas audiências e cancelasse os compromissos marcados para o final da tarde. Ela deixava seu gabinete por volta das quatro horas, dispensando o motorista. Atravessava a pé a movimentada Avenida dos Tribunais e tomava um táxi até o aeroporto regional.
No setor de embarque, ela descia rapidamente do carro e entrava no saguão carregando uma sacola de mão. Ia ao banheiro feminino e, minutos depois, subia a rampa interna e saía por outra porta, fazendo sinal para um táxi comum que acabara de trazer um passageiro. Ninguém a reconheceria com aquelas roupas e os óculos de lentes grossas.
Querido, hoje você será meu. Poderei tocar seu corpo, vou beijá-lo, passar a mão pelo seu rosto para traçar para sempre em minha memória o seu perfil.
Você enfim compreenderá o que sinto e saberá retribuir todo o amor e o desejo que ardem em mim. Quero que tudo esteja impecável, exatamente como imaginei.
A mulher passeia pelo quarto do chalé de paredes de troncos de madeira. Alisa uma prega do lençol, acerta a moldura de um quadro ligeiramente torto, muda a posição das almofadas de tecido rústico jogadas sobre a poltrona, ajeita as flores nos vasos, afasta da porta o pequeno tapete de tufos altos de fios de lã. Vai até o banheiro e examina um por um os frascos de sais de banho, ervas e óleos aromáticos, arranja as rosas sem cabo flutuando como ninféias dentro de um prato com água sobre a pia, coloca as toalhas felpudas formando uma pilha na borda da banheira de hidromassagem que é quase uma piscina, arruma os roupões e os chinelos, puxa as cortinas da janela e verifica o aquecedor.
De volta ao quarto, admira sua imagem no espelho. A pele aveludada de um branco leitoso com algumas sardas no colo parece ainda mais clara em oposição ao preto do conjunto de renda. O sutiã meia-taça oferece os seios cremosos, a cinta-liga se junta às meias transparentes que envolvem numa sombra escura suas longas pernas, deixando apenas um pedaço de coxas macias à mostra. Ela usa sapatos de salto alto e a calcinha por cima da cinta-liga.
Só vou tirar a calcinha. Quero transar de ligas e meias. E de sapatos, adoro transar de sapatos.
Já é noite e as cigarras cantam nos arbustos que circundam o chalé. As cabanas são distantes umas das outras e tem-se a impressão de estar sozinho na encosta da montanha, apesar dos escassos 30 km que separam a pousada da agitação da cidade. Ela custou a encontrar o lugar ideal - agradável, isolado, discreto -, onde ninguém pediu documentos, aceitando prontamente a reserva do chalé nº 6, o Alfazema, por uma semana, mediante pagamento adiantado, em dinheiro.
Das vezes em que esteve lá, a mulher sempre chegou de táxi e antes de sair telefonava pedindo outro carro que a levava de volta à cidade.
O homem por quem esperava também viria de táxi. Ele contava passar a noite na cabana e partir de manhã bem cedo, pois deveria embarcar em um dos primeiros vôos da Ponte Aérea.
Ela espalha mais algumas gotas de perfume. No sulco entre os seios, na nuca, atrás das orelhas, nas costas, nos pulsos, na barriga.
O quarto está bem iluminado, ela não quer perder nenhum detalhe, precisa saber a cor dos olhos dele.
Está quase na hora. Ela ouve um som de porta de carro se fechando e passos que se aproximam. Trêmula, umedece os lábios com a língua e suporta os infinitos segundos que a separam do seu amor.
Verdes. Os seus olhos são verdes.
Os quadris machucados dos afagos brutos, ainda de meias e sapatos, ela se levanta da cama, pega a calcinha rasgada jogada no chão e empurra a pesada porta de madeira que leva ao banheiro.
Tudo está acontecendo conforme os seus desejos.
Ela liga o chuveiro e toma um banho enquanto as torneiras abertas enchem a banheira de hidromassagem, no canto oposto do banheiro.
A mulher se enrola na toalha branca e enxuga o próprio corpo com delicadeza.
Veste um dos roupões e penteia o cabelo.
A banheira já está cheia e o vapor se eleva, denso, embaçando vidros e espelhos. Ela se senta no estrado de madeira que forma um deck em volta da banheira e despeja um punhado de sais de banho e gotas de óleos aromáticos, põe para funcionar o mecanismo da hidromassagem para fazer espuma.
Volta ao quarto para chamá-lo. Ele está deitado, sereno e lasso, sorrindo de olhos fechados, prestes a adormecer.
- Eu preparei um banho - ela murmura, beijando-lhe a testa.
O homem, sonolento, ergue-se da cama devagar, abre a porta e inspira o ar espesso do banheiro:
- Que cheiro gostoso!
Nu, ele afunda na espuma perfumada, encosta a cabeça na beirada da banheira e volta a fechar os olhos, suspirando satisfeito. Ela pega uma das toalhas e a coloca dobrada sob sua nuca, acaricia seu peito e dá-lhe um beijo no ombro molhado.
Desce os degraus de madeira e caminha descalça pelo banheiro.
Tira uma rosa do prato e puxa pétala por pétala, fazendo-as cair na água.
Outra rosa e mais outra e mais outra...
O homem amado imerso em aromas e pétalas de rosa.
- Agora descanse, meu amor, descanse em paz.
Torna a puxar as cortinas sobre a janela bem vedada, solta o cano de gás do aquecedor e sai, trancando a porta.
No quarto, enrola com capricho o tapetinho peludo e o empurra sob a porta, bem acomodado no espaço mínimo entre a madeira e o chão."
Do livro Todas as Serpentes do Paraíso, de Chantal Dalmas