Frei Betto, Frei Leonardo Boff...
Batismo de Sangue: um caminho para compreensão da prática educativa da espiritualidade
Leonardo Venicius Parreira Proto
A obra (de Frei Betto) e o filme (de Helvécio Ratton), Batismo de Sangue apresenta-nos uma leitura da realidade do período da repressão política no Brasil a partir do golpe de 64, no envolvimento dos frades dominicanos do Brasil, defendendo as idéias de uma teologia voltada para a libertação dos oprimidos, realidade vivenciada pelos grupos de esquerda, e em especial, ligados à Igreja Católica, da sua ala progressista e com grupos de juventude organizados numa prática educativa em que se desenvolvia um método de compreensão dos acontecimentos e da estrutura social que ligava fé e vida; ação e teoria; com claro objetivo de transformação das estruturas sociais de injustiça numa proposta evangélica de igualdade dos bens materiais para todas as pessoas, contrariando assim a lógica do sistema capitalista em que uns possuem muito e a maioria está sem condições mínimas de sobrevivência.
No filme podemos perceber criticamente como as opções políticas, no caso da tradição religiosa daquele grupo dominicano a espiritualidade é entendida como uma dimensão também política, pode nos levar a Ver a realidade e engajar-se numa luta contra quaisquer sistema opressor, sem condições de renunciar a tomada de consciência, assumindo para si e para os/as outros/as as conseqüências do projeto de libertação. Lembremos com essas características do texto capítulo 3 do livro do Êxodo no encontro de Moisés com o Deus que É – Javé libertador que no contato com o povo convoca a militância para libertar os cativos do peso da casa do Faraó, de sua escravidão.
Lembremos, nesse mesmo contexto histórico-social, do grandioso educador Paulo Freire (2004), em seu texto sobre a pedagogia do oprimido. Sua idéia a respeito da prática da educação voltada para a liberdade, pressupõe um método, o do diálogo, que somente pode ser realizado por nossa condição de humanidade, pois trabalha o elemento da palavra como um propósito transformador do mundo – aliás, “mera coincidência” com a leitura do Evangelho de João 1, 14: o verbo se fez carne e habitou entre nós. Palavra para esse educador-político pernambucano a serviço do encontro com o/a outro/a, num exercício de escuta e fala, no qual pronúncia o mundo e põe-se a pensá-lo e transforma-lo (não basta ficar somente nas idéias, na oração) é necessário ir à realidade e cria-la ou recria-la, num movimento permanente e cotidiano da libertação individual, mas impreterivelmente coletiva da humanidade.
Esse sentido revolucionário das idéias e ações é fruto da espiritualidade pé-no-chão, como bem colocou os/as teólogos/as da libertação, e no filme, vemos o sangue como um fator de assumência das causas e um pacto/batismo com aqueles/as desprovidos de sua dignidade, de seus direitos; mesmo numa população brasileira-latina esmagada pelo recurso ideológico da alienação social, máquina de produção de cegueiras da exploração dos seres humanos, sobretudo dos/as trabalhadores/as, responsáveis sim pela produção de riqueza dessa pátria índio-latina-africana.
A teologia da libertação e sua espiritualidade encarnada nos mostram a face de um Deus que se indigna com o sangue derramado do aviltamento da riqueza explorada dos corpos da maioria das classes dominadas, enquanto as classes dirigente/dominantes fossem servidas no banquete de seus palácios e bens materiais de luxo. Aos empobrecidos dessa América-Brasil às migalhas (Mt. 15, 21-28) das sobras, restos direcionados não aos pobres, mas aos lixos dos aterros sanitários, por isso hoje, em slogans de ecologistas das classes médias, é importante cuidar dos aterros sanitários (não produzam tanto lixo, reciclemos! É a propaganda!), esquecendo-se da pobreza que nem acesso ao lixo é permitido, numa preocupação vil com a natureza em si, dissociando-a do humano, assim como temos feitos desde modernidade.
A discussão da enorme produção de lixo, a preocupação com nossa relação com o mundo “natural” é importante, mas não deve ser maior do que a causa estrutural como o sistema capitalista em sua fase neoliberal, gerador das desigualdades sociais, formador das classes sociais (privilegiadas-dominantes e marginalizadas-dominadas); fatores estes responsáveis pelos sacrifícios de seres humanos e com estes suas conseqüências: pobreza, epidemias, inchamento populacional nas cidades, esvaziamento do campo, fome, devastação das árvores, assoreamento e poluição das matas ciliares e rios... e por aí vai...).
Aqui então, uma demonstração da leitura de espiritualidade apontada nessa obra cinematográfica, é preciso rezar a realidade, julgando-a com uma proposta teológica que permita: primeiro – ver a realidade social; segundo – disposição para transformá-la; terceiro – executarmos uma ação do dia-a-dia transformadora do real; quarto – avaliar as lutas (conquistas e derrotas) de maneira permanente e quinto – celebrar ao Deus da Vida e de nossa condição histórica. Portanto, ao nos apresentar um método da Igreja da América Latina (Conferência Episcopal Latino Americana – CELAM) nos faz rememorar o quanto precisamos insistindo nessa abordagem metódica, pois o Ver-Julgar-Agir-Avaliar-Celebrar, é um instrumento de oração-prática-teoria fundamental para realizarmos em comunidade e coletividade a práxis da crítica social (afinal, nós que estamos na igreja, somos seres sociais e vivemos em dada sociedade).
Esse mesmo jeito de cultivar a espiritualidade engajada nos ajuda a desejar uma sociedade e comunidade melhor, justa e igualitária. A juventude dominicana daquele período expressou bem essa forma de desejo de um mundo sem opressão, vivido numa experiência particular e imediata da repressão militar, e por essa mesma razão enfrentou momentos de profunda crise e conflito com seus algozes, seus perseguidores, tendo ao limite da consciência corporal humana suportar a tortura de choques, ponta-pés, cacetetes, socos e outras barbáries da posição do opressor. Situação insuportável e angustiante, dos momentos tortuosos, suportados em momentos das agressões físicas e verbais com o olhar e cabeça voltada para uma espiritualidade desejante de libertação, de transcendência da situação de humilhação e deploração.
Leonardo Boff (2000), em sua colaboração com esse viés teológico da libertação, e em sua própria releitura da experiência da luta pela liberdade nos ajuda a pensar o ser desejante, utópico e livre de sistemas de opressão. Para este:
“A transcendência principalmente se dá no encontro com as pessoas. Às vezes, acontece: você está numa crise existencial, sem rumo, e encontra alguém que tem palavras seminais, que lhe acende uma luz, que coloca a mão no seu ombro, que aponta um caminho (...) Você tem uma experiência de transcendência, de ruptura de seu círculo fechado, de apoio existencial libertador” (p. 48-49).
No filme essa imagem trabalhada por Boff (2000) é experimentada no limiar do cárcere dos jovens frades dominicanos quando os mesmos celebram na prisão a Páscoa de Jesus, oferecendo aos que acreditam e não acreditam em Deus a partilha da comunhão, inclusive, para os militares, agentes oficiais do regime repressor, indo ao encontro de todos, numa proposta evangélica de radicalidade, rezada todos os dias, no cultivo de uma espiritualidade atenta aos clamores dos mais pobres, sem excluir qualquer possibilidade de libertação do próprio opressão, afinal, como diria Paulo Freire (2004), a opressão somente terminará quando oprimido e opressor forem dialogicamente libertados.
Essas idéias devem valer o sangue derramado por um dos jovens dessa proposta de revolução do Evangelho e do modelo de sociedade, no corpo batizado e ressuscitado de Frei Tito de Alencar feito e nascido sob o chão de nossa Latino-América.
Referência Bibliográfica
Bíblia Pastoral. São Paulo: Paulinas, 1990.
BOFF, Leonardo. Tempo de transcendência: o ser humano como um projeto infinito. Rio de Janeiro: Sextante, 2000.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 38 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004.