Viro-me em direção à cama, desvio o olhar da garota deitada e olho para minhas mãos gordas, meus braços gordos e, ainda com os olhos ardentes, olho pra baixo e vejo minha enorme barriga gorda, a famosa árvore de cemitério. Sinto-me num labirinto, as paredes do quarto parecem diminuir de tamanho e penso que logo serei esmagado, logo eu!
Entro em desespero e começo a suar frio, imaginando até quando minhas banhas agüentariam a pressão das paredes contra meu corpo antes de triturarem minhas carnes.
Às vezes a obesidade afeta minha percepção de realidade, sinto-me como se o mundo diminuísse e eu aumentasse de tamanho, como se isso fosse possível, numa alucinante fobia. Agora eu era tomado por esse delírio. Fujo das paredes sentando-me na cama, que estremece com meu peso.
Tento acordá-la sacudindo seu corpo nu e pálido mas ela não responde: Acorda sua meretriz! Vamos ser esmagados, vamos morrer, acorda!
De repente, uma freada brusca e um estrondo de batida de carro fazem com que eu desperte do pesadelo e volte à realidade. Olho para as paredes e as vejo ali paradas como deveriam estar. Sinto um alívio. Ouço o alvoroço na rua, uma pessoa grita ensandecida, posso perceber a correria no asfalto de sangue, a coisa deve ter sido feia! Mas não tenho forças para voltar a janela, tento recuperar-me. Vejo a moça estática, seus lábios de batom, seus seios flácidos, a cara de puta nova com uma carreira toda pela frente... Sinto-me entorpecido e sou tomado por lembranças que sempre me dominam nessas horas:
“O alívio que sinto ao sair do escritório de contabilidade, da rotina maçante do trabalho de contador, dos números sem sentido que só servem para contar, sem vida, sem raciocínio, sem imaginação. Números com cifras e nada mais. Meus colegas de trabalho me chamam pelo nome, outros me chamam de gordo, mas tudo na boa, com respeito, são estupidamente dissimulados . Meu chefe é metódico, autoritário e dono de um mau humor digno de um contador com mais de 30 anos de labuta. Sua incapacidade de ouvir é irritante, ele superestima sua capacidade e sua competência e subestima a dos outros. Mas na realidade não passa de um espertalhão que aprendeu como administrar um caixa 2 sem deixar rastros. Quando as coisas não vão bem parece querer descarregar todo o ódio e frustração que sente em relação a sua mulher pavorosa e sua amante mercenária, nos idiotas de seus empregados.
Quando eu saio desse inferno e ando pelas ruas do centro a caminho do céu a que chamam de inferninhos por ironia, vou abrindo um sorriso de maluco retribuindo a cada um que me olha com desprezo, a cada um que me observa obeso e bonachão. Vou caminhando e assustando as pessoas pelas ruas, é minha a vingança. Rumo em direção ao puteiro feliz da vida, em fuga das hipocrisias sociais e demagogias rasteiras. Nessa hora sou um chupetão de baleia livre e meu coração de elefante palpita cada vez mais acelerado a cada esquina que cruzo conforme me aproximo das boates, das casas de show. E só quando chego e adentro o ambiente escuro e sinistro é que me sinto dono de mim, sinto-me em casa. Nesses lugares não tem gordo nem magro, feio ou bonito, alto ou baixo, só há uma categoria de gente: a de putanheiros desbravadores. Gente como eu com vontade de fugir do mundo e entrar em outro, bem mais interessante e divertido.
As boates do centro que funcionam de dia são as minhas preferidas, lá paga-se pouco para entrar e posso ficar horas vendo mulheres tirando a roupa e sendo contagiado pelo cheiro de seu sexo se intensificando a cada peça de roupa que é jogada no chão, o cheiro de perfume barato misturado ao suor é melhor que qualquer perfume, que qualquer essência jamais sentida. Sinto-me um gordo feliz.
Chego e me acomodo como se estivesse no conforto de meu lar, no sofá de minha casa, costumo sentar sempre nas primeiras fileiras para poder passar a mão nas meninas, por que, se não, que graça tem? Eu passo a mão sem me importar com quem esteja ali no palco. Nessa hora eu não vejo celulite, estria e nem bunda caída. São todas objetos de meus desejos incontidos. Sou dono do pedaço.
Mas tem uns sujeitos que exageram, não sabem se comportar, são marinheiros de primeira viajem e não reconhecem quem é o comandante do navio. Nessas horas sou obrigado a usar de autoridade. Como certa vez em que um engravatado quis dar uma de esperto e cruzou minha frente para passar a mão na menina, impossibilitando minha investida. Pois bem, toquei-lhe os ombros e quando ele olhou pra trás eu abri um sorriso largo de olhar obscuro, o mesmo que disparo nas ruas, e nesse exato momento seu semblante modificou-se, empalidecido. Seus olhos se esbugalharam de medo e, sem tirar seus olhos de mim, ele recuou até sua cadeira e sem falar uma única palavra sentou-se e ali ficou sem sair mais até que resolvesse ir embora. Talvez o bastardo tenha aprendido a lição.
Existe um código de comportamento nesses lugares que deve ser respeitado e em geral o é. São regras para que a zona não vire zona. Não travar a frente de seu colega o impossibilitando de passar a mão na garota é uma delas. Mas babacas existem em todos os lugares.
Com o tempo me tornei senhor desses lugares, parecia que tinha encontrado meu lugar e tudo caminhava bem até que um fato marcante alterou minha vida. Foi numa tarde quente e chuvosa de março que tive a visão do inferno ou pelo menos do demônio. Naquele dia arrumei uma desculpa qualquer e saí mais cedo do escritório pois meu chefe estava insuportável e eu havia passado uma noite terrível, acordado pelo ruído macabro de gatos transando em meu telhado, parecia que cem crianças choravam dentro de minha cabeça. Pensei em subir no telhado e matar esses malditos gatos, mas talvez o telhado viesse abaixo com meu peso, resolvi deixar pra lá. Com o pouco de disposição que me restava rumei para uma das boates, a fim de esquecer meu algoz e tirar de minha cabeça a estridente sinfonia da trepada dos gatos que insistia em me atormentar.
Entrei no lugar e me sentei na frente como sempre faço. Meia dúzia de almas me faziam companhia e entre elas uma me chamou a atenção. Sentado na fileira a esquerda tinha um cara que parecia um índio, carrancudo e com uma deformidade na cabeça como se tivesse sido atingido por um machado, coisa pavorosa. O cara não se mexia do lugar, mantendo o olhar fixo no palco, parecia congelado na cadeira.
Depois de observá-lo por alguns instantes, bastante intrigado, voltei minha atenção para o palco onde uma morena já nua enfiava os dedos na vagina para depois colocá-los na boca. Esqueci o índio nesse momento e, quando terminou o show, fui olhar e o cara não estava mais lá, havia sumido. Curioso, fui ao banheiro e não encontrei o cara. Da posição em que estava, para ter ido embora ele deveria ter passado por mim, mas não passou. Simplesmente sumiu sem deixar rastro. Nesse momento tive a sensação que ele não pertenceria ao meu mundo, senti um calafrio percorrer a espinha. Voltei a sentar onde estava antes e foi nesse momento que percebi que estava próximo de descobrir um segredo capaz de expandir a realidade. Algo sinistro havia acontecido naquele dia que não sabia bem como explicar. Depois disso por muitas vezes tive essa mesma sensação sem descobrir tal segredo. Tentei seguir minha vida normalmente mas não conseguia mais ser o mesmo, passei a sentir raiva e melancolia. Na noite seguinte, tomado por uma fúria incontrolável, ao encontrar um gato em meu quintal, tomei o pobrezinho em meus braços, comecei a acariciá-lo e, depois de conquistar sua confiança, coloquei o animal no chão que rapidamente começou a esfregar o corpo em minha perna num gesto quase humano de agradecimento. Insensível, dei sequência ao meu plano de matá-lo, da forma mais cruel que minha tosca imaginação pôde conceber no momento, virei de costas e mirei o gato no chão e, como um mergulhador, saltei sobre o gato indefeso, senti o impacto com o chão amortecido pelo gato que foi esmagado por mim. Não sentia um pingo de remorso.
Passei a sair quase que todos os dias cedo do trabalho na agonia de entrar logo em alguma boate, só lá me sentia bem.Seguei a ameaçar meu chefe de denunciá-lo, eu estava louco.Agora não era mais uma questão de fuga da realidade mas eu fugia de mim mesmo ou de algo que eu não sabia o que era.Não tinha mais contro-le sobre isso.
Até que, em uma boate chamada Cine Cairo, umas das estranhas que conheço, reparei que havia no final do corredor, no extremo oposto ao palco uma porta solitária. A porta preta confundia-se com o breu do lugar, tornando-se quase imperceptível aos olhos humanos. Não era a porta do banheiro, que ficava no outro extremo do mesmo corredor, ao lado do palco. Banheiro onde alguns caras ficavam na porta olhando para a parte visível do palco à espera da aparição da dançarina para saciarem sua tara, inundando o ambiente de um cheiro de secreção humana apodrecida.
A porta que observava agora parecia não dar passagem para lugar algum. Ninguém saía ou entrava por ela. Chamei uma garota e perguntei sobre o objeto de minha curiosidade. A moça foi sentando em meu colo, tinha os braços peludos e os dentes falhos. Senti um enorme desprezo por aquela criatura, senti vontade de esganá-la. Ela disse que não sabia pra que servia a tal porta. Eu a dispensei logo e segui em direção à porta, no caminho cruzei com um cara negro, alto de paletó branco, calça de linho e camisa vermelha que me disse algo que não compreendi ou não quis ouvir. Deixei pra lá e fui tentar abrir a porta. Fiquei de frente para ela, observando. Senti vertigem. Minha cabeça começou a rodar, dei um passo a frente e minha mão foi de encontro a maçaneta negra. Recuperei os sentidos e girei a maçaneta abrindo a porta... no palco uma mulher branca e de corpo bem feito dançava enlouquecida e semi-nua com uma máscara de lã, dessas que os assaltantes usam para esconder a face na hora do crime, ao som de música eletrônica "satisfaction...satisfaction...". A porta estava aberta, o segredo desvendado."
As sirenes tomam conta do ambiente me tirando do mundo das lembranças. O resgate chegou lá fora. Abandono a cama e rumo em direção oposta a janela, desinteressado pelo acidente da rua.
No banheiro olho para meu rosto gordo que refletido no espelho mal coube nele. Viro para o lado e observo a privada e penso como ela pode agüentar o peso de meu enorme traseiro, como o senso comum nos engana. Afinal, as regras de proporção matemáticas são generosas com
os gordos ao contrário do que muitos pensam. Vou até a privada e enfio a cabeça na água ficando entalado, minha cabeça estava atolada na privada, faço força com as mãos apoiadas nas bordas da privada, sinto que foi morrer afogado. Dou um tranco desesperado e consigo me soltar começo a recuperar o folego. Parece tudo normal.Levanto e volto ao espelho.
Volto-me para a imagem refletida, vejo meus olhos, as pupilas dilatadas,ainda tento me recuperar dos efeitos da poluição, lembro da garota que está em minha cama completamente inerte assim como as paredes, lembro que segundos atrás eu quase me afoguei na privada.Respiro fundo e minha mente é preenchida por uma sensação de
alegria mórbida, então eu abro um largo sorriso. Minhas bochechas parecem querer saltar pra fora do espelho e meus olhos pra fora das órbitas. Tenho acesso a um surto de risada delirante.As gargalhadas ecoam por todo o apartamento indo parar na rua e se confundindo com os gritos e choro de desespero dos parentes dos acidentados lá fora.Sem tirar os olhos de meu reflexo alucinado no espelho sou tomado por uma
alegria infinita enquanto o sonho jaz em minha cama. O sonho de uma garota de programa e seu cliente, um sonho comum, uma garota comum. Mas eu não sou um cliente comum.Não sou um mero rolha de poço alvo de chacotas. Eu sou o lado sórdido da vida mundana.Eu sou aquele que assombra aquelas que nos assombram. Eu sou o GORDO DO ORION.