O sogro, seu Juari, havia abotoado o paletó de madeira há alguns anos antes de tal empreitada e sempre falava que gostaria de fazer uma viagem dessas antes de partir desta para a melhor (no caso dele, não poderia ser para pior, certamente). O fato é que as passagens foram compradas antecipadamente pela velha, assim como a rota também fora escolhida por ela, sempre tendo como parâmetro o que o defunto gostaria de ter feito e não fez. Claro deve estar que a idéia de fazer um cruzeiro não era, exatamente, tudo o que Mendoncinha mais gostaria de fazer na sua vida naquele momento. E o fato de não participar ( ou não ser chamado para isso) da escolha do itinerário também não era algo comum em suas viagens de férias anuais. Naquele momento,porém, fazia vista grossa e olhar de paisagem para qualquer despautério que Mimi dissesse. Poucas mulheres aguentariam o que ela suportou e , com o facho mais sossegado depois de uma presepada recente, estava concordando com todas as vontades dela e , mais que isso, procurando aparentar um entusiasmo juvenil com a viagem que estava longe de sentir.
Era mais ou menos isso o que ia na mente de Mendoncinha naquele momento, em que contemplava o mar aberto ao entardecer, sozinho, esperando por alguém, como veremos a seguir. " Eu sou rei do mundo!!!!!", pensou, sorrindo, enquanto observava indolentemente o vagar das ondas e o som do imenso oceano a sua frente. Por incrível que pareça, no final das contas, a viagem estava sendo até bem divertida, com todas aquelas atrações que esses barcos enormes costumam possuir para entreter os seus clientes. Havia, no entando, um detalhezinho que estava lhe deixando um pouco perturbado : em alguns momentos da viagem, teve a desagradável experiência de ter visto o seu Juari por duas vezes . Em uma delas, pode vê-lo de longe, de sua mesa , onde jantava com a esposa e a sogra. Estava recostado ao bar, tomando uma cerveja, olhando fixamente para ele, como se fosse a coisa mais normal do mundo. Seu Juari bebia, apontava para o copo e fazia sinal de positivo, com o polegar, como que aprovando a qualidade da cerveja. Como já estava bebaço, no entanto, não fez caso daquela "visão"; pelo contrário, em um determinado momento, ergueu seu copo , simulando um brinde, em direção ao velho espectro que tomava calmamente o seu fogo do outro lado do restaurante. Sua mulher , imediatamente o fulminou com o olhar, imaginando que se tratasse de alguma piranha qualquer. Mendoncinha, no entanto, brindou de novo, apontando para onde estava o seu Juari e murmurando, completamente travado: " Olha só, quem é morto também sempre aparece, meu bem..." Ela olhou , e, como não viu nada que a incomodasse, logo se acalmou, imaginando que fosse mais alguma babaquice de seu ébrio e espirituoso marido.
Naquele dia, porém, foi diferente. Acordara um pouco mais tarde, e percebeu que Mimi e a véia já haviam descido para tomar café. Estava fazendo uma horinha antes de levantar quando viu que a luz do banheiro estava acesa. Levantou-se então para lavar o rosto, quando deu de cara com seu Juari ; estava sentado no vaso, aparentemente cagando, lendo uma das revistas de Mimi. Vendo que Mendoncinha finalmente havia dado conta de sua presença, comentou, sem abaixar a revista:
- Patcha que las corneta, nego... Mas essa Angelita Feijó é uma dona muito da gostosa, hein negão...
- Seu Juari...! Como tem passado? - perguntou, desconcertado, já que era a primeira vez que cumprimentava um fantasma. Não sabia muito bem como se portar.
- Vou levando. Estou aqui a serviço, se é que você me entende, queridão...
- Não entendo, pra ser sincero com o senhor. Mortos não trabalham, seu Juari.
- Quem disse isso, meu filho? Claro que nóis trabalha, nego. Nesse caso , a minha missão é te avisar para ficar naquele lugar onde você esteve ontém, enquanto se escondia da Mimi, que alguém vai te encontrar por lá. Parece que é muito importante, está entendendo? Portanto, hoje de tardinha, dá um jeito de se livrar da jararaca e da cobrinha e espera lá quem quer esteja querendo te encontrar. Trata de não fazer merda dessa vez, entendeu?
- Pode deixar, seu Juari. Agora, se o senhor não se importa, eu vou descer para tomar o café, as duas devem estar me esperando lá embaixo...
- Não conta muito com isso, negão. Mas vai lá. E fecha essa porta que agora eu vou dar uma cagada que vai sair daqui de dentro pelo menos um Marcelinho Carioca, meu filho.
Isso havia ocorrido naquela manhã. A qualquer momento, alguém iria aparecer por ali, conforme as instruções de seu sogro. Logo, o contato do além dera o ar de sua graça: e era uma das garçonetes do restaurante, uma tiazonha já com seus cinquentão e com tudo em cima, aparentemente.
- Olá,senhor Mendonça. - disse com voz rouca. - O tempo urge, e preciso lhe explicar em poucas palavras o motivo de minha presença aqui. Por isso, escute com toda a atenção , porque, provavelmente não conseguirei repetir, entende? - falava com uma voz que poderia ser muito bem a da Nair Belo.
Medocinha anuiu com a cabeça, olhando fixamente para o decote da mulher. Tinha ainda uma peitaria de responsa, a tia.
- Essa porra aqui vai afundar. Iremos a pique daqui há poucos minutos. Nesse exato momento, um demente qualquer está sabotando as máquinas e plantando uma bomba que vai abrir um buranco enorme na proa dessa banheira . Saca o Titanic? Vai ser mais ou menos igual, mas não vai ter gelo e nem inglesa gostosona dando mole, nem o navio vai dar aquela embicada animal que tu viu no filme . Nem vai ter aqueles doidão tocando violino . O pessoal da banda, pelo que sei, vai ser um dos mais desesperados para dar área daqui. Os inseto vão dar uns mortal acrobático que nem os atleta de salto ornamental das olimpíada, você tá me entendendo?
Mendocinha ia perguntar o que a dona fazia ali lhe contando tudo aquilo , ao invés de tomar as medidas necessárias para impedir a tragédia. Mas como a tiazinha parecia ir se exaltando a medida que falava, achou melhor calar, por enquanto.
Ela , no entanto, logo replicou sua pergunta imaginária, como se pudesse ler nos seus olhos o que estava pensando.
- Não adiantaria nada. Além do mais, o cara ali iria certamente se vingar de mim de alguma forma bem desprezível. Se eu colaborar , acho que vou ter uma morte mais tranquila. Você sabe de quem estou falando, né? - perguntou, apontando pra cima com visível irritação.
- Não sou religioso, querida.
- Nem eu. Isso aqui é tudo uma fachada, um universo paralelo, onde aquele sociopata se diverte. Logo, o barco afundará e você não vai lembrar de nada, acordará semi nu em uma ilhota qualquer, com um monte de puta aborígene ao seu redor, uma mais gostosa que a outra, todas loucas pra chuparem o seu pau. E nós, que não faremos mais parte da história cretina dele, morreremos todos afogados... - nesse momento ela voltou a olhar o céu de forma ainda mais desafiadora - Gordinho filha da puuuuuuuuuutaaaaa!!!!!!!! - e emendou apontando o dedo médio em direção às nuvens, que apresentavam a estranha forma de uma pera calva...
- Que é que tu andou bebendo, minha tia? Eu também quero...
- Eu sei o que você nem imagina , fio... Nesse momento, o gordinho está lá, suando, digitando aquele latop furiosamente, pensando no que vai inventar no parágrafo seguinte. É um egoísta de merda!!!! Eu não pedi pra esse corno me inventar e , agora, serei obrigada a engolir água salgada até virar merenda de tubarão...
Mendoncinha, olhava para a tia, que agora estava realmente muito puta, vermelha, com as veias do pescoço saltando e tudo mais. Estava com um tesão desgraçado, um tanto quanto chapado e não pensou muito antes de mandar essa:
- Tia, com todo respeito, não me leve a mal não. Mas, já que o mundo vai acabar e tudo mais, será que a senhora não poderia fazer alguma coisa pra me ajudar? - disse enquanto apontou para o pau. - Sério mesmo, tia. A coisa tá feia, minha mulher mal fala comigo, estou viajando com a porra da minha sogra e os carai... Aquela velha não deixa a minha mulher um minuto, entende? Chata pra caralho...Tá foda,tá foda... Eu preciso meter, minha filhinha, sabe como é? Pelo menos um chupetol, qualquer coisa...
A tia , ao ouvir aquela conversa de bêbado insano, esboçou um sorriso e, logo depois, consultou o relógio. A seguir, emendou, aparentando sentir algo entre o enfado e a resignação:
- Não há mais tempo pra isso, Mendoncinha. Agora, só há tempo para morrer.
Disse isso, virou as costas e se afastou. No mesmo momento, as luzes do navio se apagaram. Imediatamente, um murmúrio iniciou-se e aumentava em diapasão a medida que a escuridão persistia. O barco estancou. Mendoncinha viu uma formação de patos voando muito próximo ao barco. O vento pareceu esfriar, mudar de direção e soprar com uma certa violência um ar gelado que parecia não existir até então, naquela noite agradável de verão.
E depois, uma forte explosão. Forte, muito forte, a ponto de arremessá-lo a uma altura enorme para o mar aberto, cada vez mais revolto. Enquanto voava , literalmente, Mendoncinha lembrou-se das palavras da garçonete, que mencionava um ser gorducho, que parecia ter controle total sobre tudo e todos , como se fosse uma espécie de Deus, ou o próprio Deus.
E foi a ele que direcionou seu último pensamento, antes de chocar seu corpo redondo de encontro as ondas revoltas que cercavam o transatlântico em chamas que ia a pique:
- E agora? Vai ser assim mesmo?
Talvez essa seja uma pergunta recorrente dos desenganados às portas da morte, quando os mesmos conseguem ter a sanidade necessária e o tempo para formulá-la.
Momentos depois, Mendoncinha recobrou os sentidos em uma praia próxima ao local do naufrágio.
Não havia o menor sinal de índias tesudas por perto.
Acordou , ou melhor, foi ressucitado por um salva vidas negrão, de uns dois metros de altura, que lhe fazia massagens cardíacas.
Pouco tempo depois, passado o susto, ao perceber que tanto sua mulher quanto sua sogra estavam milagrosamente bem, pensou no que a garçonete disse, segundos antes da explosão.
Em um prmeiro momento, lamentou que não ocorrera o encontro dele com as índias e toda aquela coisa. Chegou até a especular sobre uma possível situação de castigo por conta disso. Pensando melhor, no entanto, percebeu que recebera , de certa forma, um destino que não poderia ser considerado um completo desastre.
Afinal de contas, o salva vidas poderia tê-lo salvado com uma respuiração boca a boca.
Toda vez que pensava nisso, olhava para o céu e agradecia àquele ser a sua imensa benevolência