Não podemos fechar os olhos para o passado.Demétrio Magnoli, trecho do artigo Contra a Lei do Esquecimento, O Estado de S. Paulo, domingo, 12.11.2006 escreveu:
O processo da família Teles contra o coronel reformado do Exército Carlos Alberto brilhante Ustra, o comandante Tibiriçá, começa em São Paulo. Esta é a primeira ação movida contra um oficial do Exército, não contra a União.
(...) A Lei de Anistia, de 1979, equiparou torturadores a torturados e fechou o caminho para processar os responsáveis pelos crimes cometidos nos porões. Sua dupla finalidade era proteger a imagem institucional das forças armadas e retirar os agentes individuais de crimes de Estado do campo de ação da Justiça. Habilmente, como contraponto à anistia dos criminosos de Estado, a Lei de Anistia ofereceu aos perseguidos políticos uma trilha rumo ao pote de ouro encaixado no fim do arco-íris. As indenizações pecuniárias, que em alguns caso alcanaçam somas espantosas, desempenahm a função crucial de cortar os fios que prendiam a memória da ditadura ao espaço público. As regras macabras desse balcão de neg´cios beneficiam mais os vivos que os parentes dos mortos, e são especialmente favoráveis aos muito vivos, que nunca sofreram um arranhão e soma reputação pública de perseguidos à moeda privada que paga anos não trabalhados em empresas que há tempo já não inexistem. O importante, contudo, é amensagem enviada pelo instituto das indenizações, que diz a todos nós que a ditadura não é um problema da sociedade brasileira, mas uma solução para os indivíduos que se envolveram, de um modo ou de outro, com o aparato da repressão política.
Agora, uma iniciativa de César Augusto Teles e Maria Amélia de Almeida Teles, presos políticos submetidos a tortura, e uma decisão histórica do juiz Gustavo Santini Teodoro, da 23ª Vara Cível do Estado de São Paulo, ameaçam todo o trpé da "transição transada". César Augusto e Maria Amélia, junto com três parentes, abriram processo contra o coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, acusando-o de tortur-alos nas dependências do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna) de São Paulo, não muito depois da Copa de 1970. O juiz Gustavo Teodoro acolheu a ação porque estão "em causa direitos humanos", recusando-se a afogar os princípios da justiça no lago de água parada das conveniências do Estado.
A ação é declaratória, o que significa que os autores não pedem a aplicação de pena de prisão nem qualuqer indenização. Eles querem o reconhecimento oficial de que Ustra os torturou e de que sofreram danos físicos e morais quando se encontravam à mercê da vontade de um Estado criminoso.
Na Argentina, as "leis do perdão" foram revogadas e os responsáveis pela "guerra suja" têm que enfrentar os tribunais. No Brasil, isso podia e devia ter sido feito, pois a Lei de Anistia é um fruto da ditadura em decomposição, não da vontade democrática da maioria. Não o fizemos e provavelmente não o faremos. Mas ainda é tempo de pelo menos imitar a África do Sul, que, com sua Comissão da verdade e Reconciliação, abriu os arquivos do apartheid, investigou as denúncias e tomou os depoimentos de acusadores e réus, rasgando o manto que cobria os seus porões.
Dis presos políticos e um juiz abriram para a nação a oportunidade de conhecer e confrontar o passado recente, para aprender a não reproduzi-lo no futuro. É a chance de converter memória em história, antes do esquecimento. Vamos desperdiçá-la?
Temos o dever de superar etapas históricas em prol de sermos, um dia, um povo orgulhoso da sua memória e do seu papel na humanidade, ultrapassando, para isso, a etapa do apaziguamento, a etapa dos "panos quentes", a etapa do esquecimento e a etapa da covardia.
O avanço da democracia, ainda que a passos curtos, não pode ser obstaculizado e depende das pequenas ações, concretas ou de consciência, de cada um!
Roman Barak.