- Você é o bola preta da família.
Essa era nova para ele. Já havia sido apontado de formas menos elogiosas antes, de vagabundo, de irresponsável, malandro, mas ninguém tinha lhe dado um tiro tão certeiro.
Não foi por coincidência que passaram a chamá-lo de Bola Preta em seu circuito tradicional. As mulheres de aluguel, todas conheciam o Bola Preta. Os amigos adotaram o apelido como se fosse uma alcunha natural, simplesmente lhe caia bem. O nome teve um efeito transformador em sua personalidade e muitas mudanças se seguiram.
A surpresa maior veio no tradicional jogo de bilhar. Antes uma atividade despretensiosa com os amigos, virara agora uma obsessão. Ficou claro que o talento inato carecia apenas de uma objetividade para aflorar.
A magistral perícia veio graças à descoberta de uma técnica que haveria de o tornar imbatível nas mesas; ele a chamou de mentalização. O que ele fazia parecia algo simples, mas na verdade dependia de uma concentração e uma capacidade de abstração que nunca soube ser capaz.
Aos poucos a fama foi se espalhando, o Bola Preta passara a ser mencionado, depois temido e por fim virou referência. O dinheiro, para além dos gastos com o meretrício, nunca o seduzira; a fama nunca a quis, e percebeu com uma lucidez desconcertante que os outros passaram a lhe tratar de modo diferente.
Pediam dinheiro, cerveja, cigarro, propostas de negócio e toda sorte de oportunidade lhe eram apresentada.
Internamente foi se fechando, foi ficando mais focado e deixou de freqüentar os bordéis, os prives, as casas de massagem, as freelas; todas sofrendo com a negligência esnobe do Bola Preta.
Certo dia treinava o bilhar tomando uma cerveja, preparando-se para uma importante competição, quando recebeu a visita do pai.
Sobressaltou-se e inconscientemente empertigou-se, arrumou o colete e centralizou o anel de ouro e diamante que agora portava no anelar da mão esquerda.
Olharam-se por intermináveis segundos, o pai avançou com olhos fixos e o abraçou sem jeito. O desconforto era como uma faísca eletrônica, não havia como enganar a natureza das coisas, eles eram iguais, dois pólos negativos a se repelir eternamente.
- Estou muito orgulhoso de ti. – Disse o velho do alto de sua dignidade vestida em terno riscado e chapéu duro de magistrado.
O Bola Preta sentiu que ia engasgar e engoliu em seco. Durante uma vida inteira quis abraçar aquele homem e dizer apenas que tinha tentado. Riu sem jeito, perguntou pela mãe, conversou alegremente com aquele que havia dito sem reservas para nunca mais lhe olhar na face nem lhe dirigir a palavra. Lembrou-se do discurso de que iria se arrepender por ter escolhido aquela vida vadia, desperdício de talento, de educação, de estar jogando o nome da família no lixo...
Nada disso importava, beberam juntos e entregou ao velho o convite para o torneio onde certamente se sagraria campeão. Todos os Louros e glórias lhe aguardavam.
Para os toureiros é “la hora de la verdad”. Aquele momento crucial que define tudo. A vida e a morte em uma única estocada. Ying e Yang, o bem e o mal em sua eterna e insolúvel batalha. A bola branca, a bola preta, aquele momento que nos lança para a glória ou nos enterra no abismo.
Todos os olhos focavam no Bola Preta. Tudo que precisava fazer era mentalizar.
Mentalizou.
Tantas vezes havia feito aquela jogada que não havia jeito de errar.
Lembrou-se da família, dos amigos, de sua vida desregrada e despretensiosa, e mais do que tudo, lembrou-se das meninas.
Pesou a fama, as riquezas, suas exigências e cobranças.
Olhou para o público, mil olhos, e achou os do pai.
O Bola Preta voltou a mentalizar e um mundo de orgias foi o que viu na ponta do taco.