A égua sempre pronta, aguardando pela volta do mestre, distraída com grama molhada, o movimento da rua, um cachorro que late, a lua sendo encoberta pelas nuvens.
Fim de semana era cavalgada, saiam do CTG lá pras bandas da Rússia, atravessavam a Várzea Pequena, o Patrão se perdendo pelos botecos, é um que acena daqui, outro que chama de lá. Apeia pra tomar só um traguinho. Todas as vezes. Prova a cachaça de abacaxi do Seu Pedrinho que desce do bigode pro peito chispando fogo pelo caminho. Se dependesse da égua não derramava uma gota, marchava com a leveza das bailarinas. Quando perguntavam pelo nome, o Patrão respondia orgulhoso: - Cigana. Cigana dos Araçás.
Se alguém a chamava de baia ele intervinha. - É palomino, igual aquele do cinema, do Roy Rogers! Ainda potranca deu trabalho, gênio forte, cheia de bardas. Naquele tempo Narciso ainda não era Patrão e comprou a Cigana ainda na meia-doma. Os dois logo se entenderam, na disciplina do amor a égua se aprumou. Dava-lhe banho depois que esfriava, começando pelas patas. Na cabeça se assustava e tinha que receber carinho no pescoço. Água no dorso lhe arrepiava e ela botava as orelhas pra trás. Escovava a crina e passava creme. Quando assustava com barulho de carro recebia puxão na rédea e relho no lombo. Nunca pra machucar, sempre educando. Na andadura não carecia de universidade. – Nasceu marchando. Sem modéstia para quem quisesse ouvir. Quando brigava e tomava alguma mordida passava graxa patente para nascer o pêlo logo. Cortar os cascos e ferrar era com ele mesmo. Ai de quem botasse a mão na égua sem seu consentimento. Tinha tendência a engordar e as vezes tinha que receber só metade do trato. Ficava com pena e trazia cenouras por que não agüentava vê-la triste. Se fosse época de Rodeio era cevada com folha de coqueiro para dar uma afinada. A sela boiadeira sempre engraxada e a frente de prata sempre brilhando. O freio levíssimo na boca sensível. Peitoral trabalhado com um coração na frente. Ofertas de todos os tipos ele recusou. A Cigana rainha onde quer que fosse.
Mesmo no escuro conhecia os caminhos do Patrão. O balde vermelho o farol de todas as noites. Ás vezes uma melindrosa vinha toda ciumenta: - Essa tua égua é mocinha ainda? O Patrão ria-se: - O meu amor é puro. Quantas vezes montaram o Patrão na éguinha e voltaram os dois seguros, vezes na marcha, vezes andando, sem que nunca levasse um tombo? Ás vezes vinha ele agarrado no pescoço falando bobagens. – Não é gostoso cheiro de cavalo? Outras vezes vinha rindo sozinho. – Gogó da Ema... Gogó. Entravam no CTG com a sinfonia dos garnizés.
Um dia o coração do Patrão não agüentou. Chegaram a leva-lo de carro para o Hospital, mas sem esperança. A Cigana dos Araçás esquecida amarrada lá no Gogó da Ema. Precisou um capataz vir busca-la na tarde do dia seguinte. Botaram a égua à venda, mas não prestava mais. Ficou com querência. Para encilhar e montar tudo certo, mas na saída da cavalgada se jogava no mata-burro. Chegava a se deitar e era preciso vara com cabeça de prego para cutuca-la. Bardosa tinha ataques de fúria que descontava na baia, os coices arrebentando os tijolos. Para tomar banho tinham que lhe manear as patas e lhe prender a boca, mordeu o capataz no sovaco. Entregaram a encrenca para um negociante. Mas égua de marcha não serve pra carroça. Quem sabe que fim teve a Cigana? Capaz até de ter virado lingüiça.