Mal havia começado a sua segunda cerveja, Deus chegara. Parecia completamente relaxado, usando uma bermuda branca, camiseta branca e sandálias havaianas. Cabelo levemente grisalho penteado pra trás, ornando com sua barba e o semblante risonho e benévolo, caminhando tranqüilamente, cumprimentando de forma mundana e contagiante a todos no lugar.
Quando chegou à mesa do Mendoncinha, este estava finalizando a leitura de um artigo que analisava as eleições presidenciais norte americanas. Antes mesmo de o cumprimentar, sacramentou:
- Fica tranqüilo, Mendoncinha; o negão vai levar essa de braçada.
Sentou-se despachadamente, colocando uma pastinha branca na cadeira ao lado.
- Ainda trabalalhando, cara? Isso aqui se chama happy hour, meu veio. Já ouviu falar?
- Gostaria de poder compartilhar dessa tua descontração, meu rapaz. As minhas atribuições, no entanto, não podem esperar, na maioria das vezes.
- Não podem ,é? Você fez o Corinthians esperar vinte e três anos pra sair da fila...
- Não viemos aqui pra falar de futebol – tornou, com um olhar irônico - Sei o que você tem em mente. A resposta é: CLARO que não.
- E porquê ? Posso saber o porquê pelo menos?
- Porque não é natural. Você gostaria de comer a Camila Pitanga, não gostaria? O que te impede?
- Veja só: coisas estranhas acontecem todos os dias. Todos os dias. Quem iria saber? Ninguém. E mesmo se, em uma hipótese completamente improvável, houvesse aqui ou ali alguma dúvida, quem iria acreditar que você estivesse diretamente envolvido? Deixa de ser paranóico...
- Não se trata disso, Mendoncinha. Deixa de ser enrolão. Você, mais do que ninguém deveria saber que a mim, ninguém toma pelo nariz. Desencana, fio.
Estalou os dedos e, em poucos segundos, o garçom se aproximou.
- Pois não, chefia?
Deus , ao que pareceu, não gostou muito de ser abordado desse jeito.
- Que tira-gosto vocês tem aqui, meu filho? Menos aqueles feitos a base de aliche, que me dão azia.
Depois de uma breve exposição das opções, escolheu uma porção de provolone a milanesa e duas cervejas uruguaias.
Mendoncinha ainda tentava convencê-lo de sua idéia quando mais alguém, inesperadamente, resolveu aparecer no pico: o Diabo.
- Mas olha só quem eu vejo aqui embaixo... Há quanto tempo !!!! Dê cá um abraço, meu amigo Jeová !!!! Como é que andam as coisas ali em cima?
Deus estava sorrindo, entornando prazeirosamente um belo gole de cerveja quando o avistou. Manteve a fleuma, embora sendo nítido o seu desgosto.
- Vou bem, Lucio Feio; donde vens tu, hein?
O Diabo, depois de pedir o seu goró ( uma cerveja preta estupidamente gelada) e beliscar o queijo, respondeu, mastigando com a boca aberta:
- Venho andando por aí. Vejo que a coisa anda boa pro meu lado. Boa até demais. Sacumé, né, Jéo? Quando a esmola é muita, o djin desconfia.
- Você fala demais para um serviçal, Méfis. As coisas só lhe parecem boas porque és tolo demais para decifrar os meus desígnios...
O Diabo, aparentemente, não percebeu o tom pouco amistoso do Senhor nesta última parte do diálogo. Como se fosse a coisa mais natural do mundo e afetando uma liberdade que nunca teve, pegou a pastinha branca e começou a desfolhar o seu conteúdo.
- Fala sério, hein, Fagundes. Ainda estão apurando as responsabilidades do Stalin? Quando é que você vão me mandar logo o sujeito? Sabia que a coisa iria demorar ainda mais quando você nomeou o Ulisses Guimarães para a comissão celestial que apura o caso...
- E quem você queria que eu nomeasse? O Lênin?
O Diabo forjou uma risada amistosa pelo chiste de Deus e se deu conta da presença do Mendoncinha.
- O que faz esse gordo aqui, hein, Jéo? O que tem ele de tão especial para merecer tamanha graça?
Mendoncinha , que não escondia sua contrariedade com a presença do capeta em sua tão esperada audiência iria responder quando o Criador lhe veio em socorro.
- Você fala demais, rapaz. Deixa o cara quieto. O Mendoncinha aqui é meu truta. Né não, feio?
- Será? A maioria deles costuma sucumbir aos meus apelos materiais. O próprio kojak aqui presente é um caso claro. - murmurou, galhofeiro, apontando para o Mendoncinha. – Ele negou seu pedido, que eu sei.Quando é que foi que esse cara já ouviu alguém daqui debaixo, aliás? Prepara tua alma, fio, que o corpo já foi. Sua chegada à minha pousada não será breve e logo você saberá disso. Antes do que imagina...
Mendoncinha, é preciso que se diga, não ficou muito impressionado com a ameaça. Tinha grande confiança em Deus e sentia que o tinhoso estava apenas de sacanagem. Mas alguma coisa no semblante de Deus o perturbou um pouco:
- Essa é a parte em que você coloca esse palhaço no devido lugar, meu veio!
- Abelardo, contenha-se. Não é prudente falar assim – Deus parecia um pouco desconfortável com a cena.
- Você vai ver quem é o palhaço e não vai demorar muito – volve o capeta, entre um gole e outro, olhando-o com desdém.
- Péra aí... que negócio é esse? – Mendoncinha parecia estar entendendo melhor a cena naquele momento – Já estou vendido, é isso? Não sou assassino em série. Não sou político. Não sou bandido. Sou um cidadão que nunca roubou ninguém. Muito pelo contrário. Estou carregando esse fardo horrendo que é a minha existência inútil e agora voce vem me dizer que estou condenado ao martírio eterno? Porque isso?
- Ao contrário do Stalin – emendou Lúcifer, estalando os beiços enquanto fazia um gesto com mão para o garçom de que queria outra cerveja – o seu caso já foi julgado, como é de praxe, pouco antes de sua morte aqui. E você foi muito mal representado no tribunal sagrado, se me permite fazer um comentário. O Defensor que te arrumaram era gago e recém formado, enquanto o meu promotor tinha eras e eras de experiência na lide celestial. Ele arrebentou completamente com o novato. Você foi condenado por um crime banal, enquanto caras como o Stalin ou o Hitler ainda aguardam decisão da corte detidos no Éden de forma preventiva. Uma vergonha total - comentou, enquanto procurava no bolso alguma coisa – Tai a paga pelas cervejas. Foi um prazer, revê-lo Jéo. E quanto a você, Abelardo, te cuida. Use com sabedoria os teus últimos dias de vida.
Continuaram a tomar suas cervejas em silêncio. Mendoncinha pensou em protestar e iria argüir qualquer coisa em sua defesa, mas desanimou ao ver que Deus comia queijo frito a milanesa enquanto lia a Veja.
Dali a poucos minutos, despediram-se. Deus retornou aos seus imensos e intermináveis afazeres. Mendoncinha, de lá rumou para a zona. Naquele momento, estava muito claro que seguir o conselho do cão seria a melhor coisa que poderia fazer na sua vida.
Fortim
Quando chegou à mesa do Mendoncinha, este estava finalizando a leitura de um artigo que analisava as eleições presidenciais norte americanas. Antes mesmo de o cumprimentar, sacramentou:
- Fica tranqüilo, Mendoncinha; o negão vai levar essa de braçada.
Sentou-se despachadamente, colocando uma pastinha branca na cadeira ao lado.
- Ainda trabalalhando, cara? Isso aqui se chama happy hour, meu veio. Já ouviu falar?
- Gostaria de poder compartilhar dessa tua descontração, meu rapaz. As minhas atribuições, no entanto, não podem esperar, na maioria das vezes.
- Não podem ,é? Você fez o Corinthians esperar vinte e três anos pra sair da fila...
- Não viemos aqui pra falar de futebol – tornou, com um olhar irônico - Sei o que você tem em mente. A resposta é: CLARO que não.
- E porquê ? Posso saber o porquê pelo menos?
- Porque não é natural. Você gostaria de comer a Camila Pitanga, não gostaria? O que te impede?
- Veja só: coisas estranhas acontecem todos os dias. Todos os dias. Quem iria saber? Ninguém. E mesmo se, em uma hipótese completamente improvável, houvesse aqui ou ali alguma dúvida, quem iria acreditar que você estivesse diretamente envolvido? Deixa de ser paranóico...
- Não se trata disso, Mendoncinha. Deixa de ser enrolão. Você, mais do que ninguém deveria saber que a mim, ninguém toma pelo nariz. Desencana, fio.
Estalou os dedos e, em poucos segundos, o garçom se aproximou.
- Pois não, chefia?
Deus , ao que pareceu, não gostou muito de ser abordado desse jeito.
- Que tira-gosto vocês tem aqui, meu filho? Menos aqueles feitos a base de aliche, que me dão azia.
Depois de uma breve exposição das opções, escolheu uma porção de provolone a milanesa e duas cervejas uruguaias.
Mendoncinha ainda tentava convencê-lo de sua idéia quando mais alguém, inesperadamente, resolveu aparecer no pico: o Diabo.
- Mas olha só quem eu vejo aqui embaixo... Há quanto tempo !!!! Dê cá um abraço, meu amigo Jeová !!!! Como é que andam as coisas ali em cima?
Deus estava sorrindo, entornando prazeirosamente um belo gole de cerveja quando o avistou. Manteve a fleuma, embora sendo nítido o seu desgosto.
- Vou bem, Lucio Feio; donde vens tu, hein?
O Diabo, depois de pedir o seu goró ( uma cerveja preta estupidamente gelada) e beliscar o queijo, respondeu, mastigando com a boca aberta:
- Venho andando por aí. Vejo que a coisa anda boa pro meu lado. Boa até demais. Sacumé, né, Jéo? Quando a esmola é muita, o djin desconfia.
- Você fala demais para um serviçal, Méfis. As coisas só lhe parecem boas porque és tolo demais para decifrar os meus desígnios...
O Diabo, aparentemente, não percebeu o tom pouco amistoso do Senhor nesta última parte do diálogo. Como se fosse a coisa mais natural do mundo e afetando uma liberdade que nunca teve, pegou a pastinha branca e começou a desfolhar o seu conteúdo.
- Fala sério, hein, Fagundes. Ainda estão apurando as responsabilidades do Stalin? Quando é que você vão me mandar logo o sujeito? Sabia que a coisa iria demorar ainda mais quando você nomeou o Ulisses Guimarães para a comissão celestial que apura o caso...
- E quem você queria que eu nomeasse? O Lênin?
O Diabo forjou uma risada amistosa pelo chiste de Deus e se deu conta da presença do Mendoncinha.
- O que faz esse gordo aqui, hein, Jéo? O que tem ele de tão especial para merecer tamanha graça?
Mendoncinha , que não escondia sua contrariedade com a presença do capeta em sua tão esperada audiência iria responder quando o Criador lhe veio em socorro.
- Você fala demais, rapaz. Deixa o cara quieto. O Mendoncinha aqui é meu truta. Né não, feio?
- Será? A maioria deles costuma sucumbir aos meus apelos materiais. O próprio kojak aqui presente é um caso claro. - murmurou, galhofeiro, apontando para o Mendoncinha. – Ele negou seu pedido, que eu sei.Quando é que foi que esse cara já ouviu alguém daqui debaixo, aliás? Prepara tua alma, fio, que o corpo já foi. Sua chegada à minha pousada não será breve e logo você saberá disso. Antes do que imagina...
Mendoncinha, é preciso que se diga, não ficou muito impressionado com a ameaça. Tinha grande confiança em Deus e sentia que o tinhoso estava apenas de sacanagem. Mas alguma coisa no semblante de Deus o perturbou um pouco:
- Essa é a parte em que você coloca esse palhaço no devido lugar, meu veio!
- Abelardo, contenha-se. Não é prudente falar assim – Deus parecia um pouco desconfortável com a cena.
- Você vai ver quem é o palhaço e não vai demorar muito – volve o capeta, entre um gole e outro, olhando-o com desdém.
- Péra aí... que negócio é esse? – Mendoncinha parecia estar entendendo melhor a cena naquele momento – Já estou vendido, é isso? Não sou assassino em série. Não sou político. Não sou bandido. Sou um cidadão que nunca roubou ninguém. Muito pelo contrário. Estou carregando esse fardo horrendo que é a minha existência inútil e agora voce vem me dizer que estou condenado ao martírio eterno? Porque isso?
- Ao contrário do Stalin – emendou Lúcifer, estalando os beiços enquanto fazia um gesto com mão para o garçom de que queria outra cerveja – o seu caso já foi julgado, como é de praxe, pouco antes de sua morte aqui. E você foi muito mal representado no tribunal sagrado, se me permite fazer um comentário. O Defensor que te arrumaram era gago e recém formado, enquanto o meu promotor tinha eras e eras de experiência na lide celestial. Ele arrebentou completamente com o novato. Você foi condenado por um crime banal, enquanto caras como o Stalin ou o Hitler ainda aguardam decisão da corte detidos no Éden de forma preventiva. Uma vergonha total - comentou, enquanto procurava no bolso alguma coisa – Tai a paga pelas cervejas. Foi um prazer, revê-lo Jéo. E quanto a você, Abelardo, te cuida. Use com sabedoria os teus últimos dias de vida.
Continuaram a tomar suas cervejas em silêncio. Mendoncinha pensou em protestar e iria argüir qualquer coisa em sua defesa, mas desanimou ao ver que Deus comia queijo frito a milanesa enquanto lia a Veja.
Dali a poucos minutos, despediram-se. Deus retornou aos seus imensos e intermináveis afazeres. Mendoncinha, de lá rumou para a zona. Naquele momento, estava muito claro que seguir o conselho do cão seria a melhor coisa que poderia fazer na sua vida.
Fortim
Cerveja uruguaia é das melhores coisas que existe (exceto a Zilertal, que é uma merda mesmo).