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Carter: Kátia Abreu recebe 25 vezes mais dinheiro do Governo do que o MST
28/março/2010 12:09
Em dezembro de 2009, Miguel Carter concluiu o trabalho de organizar o livro ‘Combatendo a Desigualdade Social – O MST e a Reforma Agrária no Brasil.’. É um lançamento da Editora UNESP, que reúne colaborações de especialistas sobre a questão agrária e o papel do MST pela luta pela Reforma Agrária no Brasil.
Esta semana, ele conversou com Paulo Henrique Amorim, por telefone.
PHA – Professor Miguel, o senhor é professor de onde?
MC – Eu sou professor da American University, em Washington D.C.
PHA – Há quanto tempo o senhor estuda o problema agrário no Brasil e o MST?
MC- Quase duas décadas já. Comecei com as primeiras pesquisas no ano de 91.
PHA – Eu gostaria de tocar agora em alguns pontos específicos da sua introdução “Desigualdade Social Democracia no Brasil”. O senhor descreve, por exemplo, a manifestação de 2 de maio de 2005, em que, por 16 dias, 12 mil membros do MST cruzaram o cerrado para chegar a Brasília. O senhor diz que, provavelmente, esse é um dos maiores eventos de larga escala do tipo marcha na história contemporânea. Que comparações o senhor faria ?
MC – Não achei outra marcha na história contemporânea mundial que fosse desse tamanho. A gente tem exemplo de outras mobilizações importantes, em outros momentos, mas não se comparam na duração e no numero de pessoas a essa marcha de 12 mil pessoas. Houve depois, como eu relatei no rodapé, uma mobilização ainda maior na Índia, também de camponeses sem terra. Mas a de 2005 era a maior marcha.
PHA – O senhor compara esse evento, que foi no dia 2 de maio de 2005, com outro do dia 4 de junho de 2005 – apenas 18 dias após a marcha do MST – com uma solenidade extremamente importante aqui em São Paulo que contou com Governador Geraldo Alckmin, sua esposa, Dona Lu Alckmin, e nada mais nada menos do que um possível candidato do PSDB a Presidência da República, José Serra, que naquela altura era prefeito de São Paulo. Também esteve presente Antônio Carlos Magalhães, então influente senador da Bahia. Trata-se da inauguração da Daslu. Por que o senhor resolver confrontar um assunto com o outro ?
MC – Porque eu achei que começar o livro com simples estatísticas de desigualdades sociais seria um começo muito frio. Eu acho que um assunto como esse precisa de uma introdução que também suscite emoções de fato e (chame a atenção para) a complexidade do fenômeno da desigualdade no Brasil. A coincidência de essa marcha ter acontecido quase ao mesmo tempo em que se inaugurava a maior loja de artigos de luxo do planeta refletia uma imagem, um contraste muito forte dessa realidade gravíssima da desigualdade social no Brasil. E mostra nos detalhes como as coisas aconteciam, como os políticos se posicionavam de um lado e de outro, como é que a grande imprensa retratava os fenômenos de um lado e de outro.
PHA – O senhor sabe muito bem que a grande imprensa brasileira – que no nosso site nós chamamos esse pessoal de PiG (Partido da Imprensa Golpista) - a propósito da grande marcha do MST, a imprensa ficou muito preocupada como foi financiada a marcha. O senhor sabe que agora está em curso uma Comissão Parlamentar de Inquérito Mista, que reúne o Senado e a Câmara, para discutir, entre outras coisas, a fonte de financiamento do MST. Como o senhor trata essa questão ? De onde vem o dinheiro do MST ?
MC _ Tem um capítulo 9 de minha autoria feito em conjunto com o Horácio Marques de Carvalho que tem um segmento que trata de mostrar o amplo leque de apoio que o MST tem, inclusive e apoio financeiro.
PHA – O capítulo se chama “Luta na terra, o MST e os assentamentos” - é esse ?
MC – Exatamente. Há uma parte onde eu considero sete recursos internos que o MST desenvolveu para fortalecer sua atuação, nesse processo de fazer a luta na terra, de fortalecer as suas comunidades, seus assentamentos. E aí tem alguns detalhes, alguns números interessantes. Porque eu apresento dados do volume de recursos que são repassados para entidades parceiras por parte do Governo Federal. Eu sublinho no rodapé dessa mesma página o fato de que as principais entidades ruralistas do Brasil têm recebido 25 vezes mais subsídios do Governo Federal (do que o MST). E o curioso de tudo isso é que só fiscalizado como pobre recebe recurso público. Mas, sobre os ricos, que recebem um volume de recursos 25 vezes maior que o dos pobres, (sobre isso) ninguém faz nenhuma pergunta, ninguém fiscaliza nada. Parece que ninguém tem interesse nisso. E aí o Governo Federal subsidia advogados, secretárias, férias, todo tipo de atividade dos ruralistas. Então chama a atenção que propriedade agrária no Brasil, ainda que modernizada e renovada, continua ter laços fortes com o poder e recebe grande fatia de recursos públicos. Isso são dados do próprio Ministério da Agricultura, mencionados também nesse capítulo. Ainda no Governo Lula, a agricultura empresarial recebeu sete vezes mais recursos públicos do que a agricultura familiar. Sendo que a agricultura familiar emprega 80% ou mais dos trabalhadores rurais.
PHA – Qual é a responsabilidade da agricultura familiar na produção de alimentos na economia brasileira ?
MC – Na página 69 há muitos dados a esse respeito.
PHA- Aqui: a mandioca, 92% saem da agricultura familiar. Carne de frango e ovos, 88%. Banana, 85%.. Feijão, 78%. Batata, 77%. Leite, 71%. E café, 70%. É o que diz o senhor na página 69 sobre o papel da agricultura familiar. Agora, o senhor falava de financiamentos públicos. Confederação Nacional da Agricultura, presidida pela senadora Kátia Abreu, que talvez seja candidata a vice-presidente de José Serra, a Confederação Nacional da Agricultura recebe do Governo Federal mais dinheiro do que o MST ?
MC – Muito mais. Essas entidades ruralistas em conjunto, a CNA, a SRB, aquela entidade das grandes cooperativas, em conjunto elas recebem 25 vezes do valor que recebem as entidades parceiras do MST. Esses dados, pelo menos no período 1995 e 2005, fizeram parte do relatório da primeira CPI do MST. O relatório foi preparado pelo deputado João Alfredo, do Ceará.
PHA – O senhor acredita que o MST conseguirá realizar uma reforma agrária efetiva ? A sua introdução mostra que a reforma agrária no Brasil é a mais atrasada de todos os países que fazem ou fizeram reforma agrária. Que o Brasil é o lanterninha da reforma agrária. Eu pergunto: por que o MST não consegue empreender um ritmo mais eficaz ?
MC – Em primeiro lugar, a reforma agrária é feita pelo Estado. O que os movimentos sociais como o MST e os setenta e tantos outros que existem em todo o Brasil fazem é pressionar o Estado para que o Estado cumpra o determinado na Constituição. É a cláusula que favorece a reforma agrária. O MST não é responsável por fazer. É responsável por pressionar o Governo. Acontece que nesse país de tamanha desigualdade, a história da desigualdade está fundamentalmente ligada à questão agrária. Claro que, no século 20, o Brasil, se modernizou, virou muito mais complexo, surgiu todo um setor industrial, um setor financeiro, um comercial. E a (economia) agrária já não é mais aquela, com tanta presença no Brasil. Mas, ainda sim, ficou muito forte pelo fato de o desenvolvimento capitalista moderno no campo, nas últimas décadas, ligar a propriedade agrária ao setor financeiro do país. É o que prova, por exemplo, de um banqueiro (condenado há dez anos por subornar um agente federal – PHA) como o Dantas acabar tendo enormes fazendas no estado do Pará e em outras regiões do Brasil. Houve então uma imbricação muito forte entre a elite agrária e a elite financeira. E agora nessa última década ela se acentuou num terceiro ponto em termos de poder econômico que são os transacionais, o agronegócio. Cargill, a Syngenta… Antes, o que sustentava a elite agrária era uma forte aliança patrimonialista com o Estado. Agora, essa aliança se sustenta em com setor transacional e o setor financeiro.
PHA – Um dos sustos que o MST provoca na sociedade brasileira, sobretudo a partir da imprensa, que eu chamo de PiG, é que o MST pode ser uma organização revolucionária – revolucionária no sentido da Revolução Russa de 1917 ou da Revolução Cubana de 1959. Até empregam aqui no Brasil, como economista Xico Graziano, que hoje é secretário de José Serra, que num artigo que o senhor fala em “terrorismo agrário”. E ali Graziano compara o MST ao Primeiro Comando da Capital. O Primeiro Comando da Capital, o PCC, que, como se sabe ocupou por dois dias a cidade de São Paulo, numa rebelião histórica. Eu pergunto: o MST é uma instituição revolucionária ?
MC – No sentido de fazer uma revolução russa, cubana, isso uma grande fantasia. E uma fantasia às vezes alardeada com maldade, porque eu duvido que uma pessoa como o Xico Graziano, que já andou bastante pelo campo no Brasil, não saiba melhor. Ele sabe melhor. Mas eu acho que (o papel do) MST é (promover) uma redistribuição da propriedade. E não só isso, (distribuição) de recursos públicos, que sempre privilegiou os setores mais ricos e poderosos do país. Há, às vezes, malícia mesmo de certos jornalistas, do Xico Graziano, Zander Navarro, dizendo que o MST está fazendo uma tomada do Palácio da Alvorada. Eles nunca pisaram em um acampamento antes. Então, tem muito intelectual que critica sem saber nada. O importante desse (“Combatendo a desigualdade social”) é que todos os autores têm longos anos de experiência (na questão agrária). A grande maioria tem 20, 30 anos de experiência e todos eles têm vivência em acampamento e assentamentos. Então conhecem a realidade por perto e na pele. O Zander Navarro, por exemplo, se alguma vez acompanhou de perto o MST, foi há mais de 15 anos. Tem que ter acompanhamento porque o MST é de fato um movimento.
PHA – Ou seja, na sua opinião há uma hipertrofia do que seja o MST ? Há um exagero exatamente para criar uma situação política ?
MC – Exatamente. Eu acho que há interesse por detrás desse exagero. O exagero às vezes é inocente por gente que não sabe do assunto. Mas às vezes é malicioso e procura com isso criar um clima de opinião para reprimir, criminalizar o MST ou cortar qualquer verba que possa ir para o setor mais pobre da sociedade brasileira. Há muito preconceito de classe por trás (desse exagero).
http://colunistas.ig.com.br/luisnassif/ ... fantasias/
O MST, sem fantasias
Do Valor
Nem demônio, nem anjo, mas ator social
Maria Inês Nassif
A técnica de discurso doutrinário, particularmente usada em situações históricas onde grupos de poder precisam de forte respaldo popular para seus projetos próprios, centra-se na repetição de “verdades” – verdades mesmo, verdades aumentadas ou simplesmente mentiras – que respaldem ideologicamente não apenas esses setores, mas convençam a um maior número de pessoas de que são verdades únicas, contra as quais não existe argumento racional. Essas verdades têm que ser apresentadas como dogmas, sob pena de não parecerem “a” verdade. Isso é muito usado eleitoralmente, mas não apenas nesses momentos em que o convencimento de parcelas majoritárias da população pode se converter em votos que respaldarão democraticamente um projeto de poder. Ela se incorpora à própria vida social quando o que está em jogo é uma disputa pela hegemonia.
O livro “Combatendo a desigualdade social: o MST e a reforma agrária no Brasil”, organizado por Miguel Carter – mexicano criado no Paraguai – professor da School of International Service da American University, em Washington DC, coloca em perspectiva o senso comum criado em torno do MST. Primeiramente, ele propõe que se deixe de lado dois exageros: da direita, que, no limite, equipara o movimento pela reforma agrária ao terrorismo; e o de esquerda, que o romantiza, superestimando a sua influência. Na introdução ao livro, que traz 16 artigos de autores variados, Carter relativiza uma e outra posição. O MST é um movimento complexo e duradouro, mas é uma “associação de pessoas pobres”, “opera com recursos limitados” e é susceptível a problemas de ação coletiva como qualquer outro movimento social. Não agrega mais do que 1% da população, nem chega a 5% da população rural. Não é bandido e não é mocinho: apenas um ator social sujeito a erros, mas que representa setores sociais expostos à miséria e vitimados por uma das piores distribuições de renda do mundo.
O MST tem dois grandes méritos históricos, segundo o autor: o de expor e desafiar enormes desigualdades de renda e fundiária do Brasil, internamente; e, externamente, de ter recolocado na agenda internacional a reforma agrária, depois da hibernação do tema no período pós-anos 80, quando a forte urbanização do Terceiro Mundo, o avanço tecnológico agrícola e a ascensão do neoliberalismo começaram a questionar fortemente a reforma agrária como política pública. E a forte reação interna de determinados setores sociais ao movimento responde muito mais ao que o MST expõe – um país com uma imensa concentração de renda e fundiária – do que propriamente pelo risco “revolucionário” que representa.
O movimento, de fato, tem um elevado grau de sofisticação de organização popular, registra Carter: estima-se “1,14 milhão de membros, mais de 2 mil assentamentos agrícolas, cerca de 1.800 escolas primárias e secundárias e uma escola de ensino superior, vários meios de comunicação, 161 cooperativas rurais e 140 agroindústrias”. Entre 1985 e 2006, conseguiu assentar seus integrantes em 3,7 milhões de hectares. Mas, embora o mais visível e organizado movimento pela reforma agrária – até 2006, tinha mais de um quarto dos 7.611 assentamentos do país -, não mantém a mesma proporção de participação na terra distribuída pelos governos. Segundo o organizador do livro, mais de 90% da terra distribuída entre 1979 e 2006 responderam a reivindicações de outros movimentos de sem-terras.
O outro mito seria o de negação do Estado pelo MST. As reformas agrárias, por definição, “implicam o envolvimento do Estado na reestruturação de relações de direito de propriedade”. Sem o Estado, isso só acontece em situações de guerra – mas, mesmo nessas ocasiões, o Estado deve sancionar o resultado da disputa. Também não existe reforma agrária se não houver demanda social por distribuição fundiária. Carter sugere que a execução de reformas agrárias acabem se constituindo numa articulação de impulsos do Estado – que sanciona – e da sociedade – que demanda. No caso do MST, o movimento articula as duas faces da reforma: as marchas e invasões normalmente são apenas um lado da mobilização, que se completa – e concretiza a reforma agrária – com a negociação com o Estado.
Outro dado que relativiza o poder de interferência na vida institucional do país, reproduzido pelo autor, é o de sua representação política, em relação à dos grandes proprietários rurais e do agronegócio. Segundo ele, de 1995 a 2006, a representação política média dos camponeses sem-terra e agricultores familiares foi de um deputado federal por 612 mil famílias. Os grandes proprietários rurais fizeram um deputado federal para cada 236 famílias – tiveram, portanto, uma representação parlamentar 2.587 maior que a dos sem-terra. Essa distorção decorre de uma precariedade de direitos políticos entre os pobres – a negação do direito do voto aos analfabetos até 1985, o clientelismo político, a prática de compra de votos e distorções de representação. O maior acesso dos latifundiários ao poder político resultou em acesso correspondente ao orçamento público: para cada dólar disponibilizado de dinheiro público aos sem-terra, foram liberados US$ 1.587 dólares para os maiores fazendeiros do país.
A realidade que se esconde nas amplificações do “perigo” do MST não é boa para o processo civilizatório brasileiro. Mesmo andando nos governos FHC e Lula – de forma “reativa, restrita e de execução morosa” – , a reforma agrária brasileira é, em termos proporcionais, uma das menores de toda a América Larina. A reforma feita entre 1985 e 2006 situa o Brasil no 15º lugar no Índice de Reforma Agrária da América Latina, dois lugares antes do último colocado. Um por cento dos proprietários rurais controla 45% de todas as terras cultiváveis do país, e 37% dos proprietários rurais possuem apenas 1% dessas terras (números de 2005 do Ipea).
Maria Inês Nassif é repórter especial de Política. Escreve às quintas-feiras
http://www.viomundo.com.br/entrevistas/ ... antas.html
Stedile: “A mídia critica nossas ocupações, mas faz vista grossa às terras griladas pela Cutrale e Daniel Dantas”
por Conceição Lemes
17 de abril de 1996. Cerca de 1.500 famílias de trabalhadores rurais sem-terra estão acampadas há mais de um mês no município de Eldorado dos Carajás, sul do Pará. Reivindicam a desapropriação de terras, principalmente as da Fazenda Macaxeira.
Como não são atendidas, em 10 de abril, iniciam a “Caminhada pela Reforma Agrária”, rumo a Belém, a capital, para sensibilizar as autoridades. No dia 16, montam acampamento próximo à cidade de Eldorado dos Carajás, interditam a estrada (no km 96 da rodovia PA-150) e exigem alimentos e transporte. Às 20h, o major que negocia com lideranças do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) garante que as reivindicações seriam levadas às autoridades estaduais e federais competentes. Um acordo é fechado.
Mas no dia 17, às 11h, um tenente da Polícia Militar (PM) comunica uma contra-ordem: nenhuma reivindicação seria atendida, nem a mesmo a doação de alimentos. Duas tropas fortemente armadas da PM – uma vinda de Marabá, outra de Paraupebas –, ocupam a estrada e iniciam a desobstrução, descarregando revólveres, metralhadoras e fuzis sobre os trabalhadores sem-terra, que se defendem com paus, pedras, foices e os tiros de um único revólver. O resultado da operação é o Massacre de Eldorados dos Carajás: 19 sem-terra barbaramente assassinados e 69 feridos. Os feridos tiveram de ser aposentados por incapacidade para o trabalho agrícola; dois deles faleceram meses depois em consequência dos ferimentos.
A partir daí, a Via Campesina Internacional instituiu o 17 de abril como o Dia Internacional da Luta Camponesa. No Brasil, o então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, tornou a mesma data Dia Nacional de Luta pela Reforma Agrária. Desde então, acontecem manifestações camponesas no Brasil e no restante da América Latina. Este ano, no dia 17, elas ocorrerão mais uma vez.
“O objetivo é dar visibilidade à nossa luta, até porque, até hoje, nenhum dos policiais e políticos responsáveis pelo Massacre de Carajás foi punido”, afirma João Pedro Stedile, o principal líder do MST. “O papel do nosso movimento é organizar os trabalhadores do campo pobres para que lutem por seus direitos, melhorem de condições de vida e tenham terra para trabalhar.”
A mídia corporativa, que frequentemente criminaliza o movimento dos trabalhadores rurais sem-terra, já está em campanha contra o “Dia Nacional de Luta pela Reforma Agrária” de 2010. O editorial “O vermelho de abril” publicado no Estadão de domingo passado, 4 de abril, é uma mostra do que está por vir. Nesta entrevista exclusiva ao Viomundo, João Pedro aborda desde o comportamento da mídia às ocupações violentas do MST, que têm feito com que o movimento perca apoio de uma parte da sociedade.
Viomundo — O editorial do Estadão do último domingo dissemina medo em relação ao MST. Ao mesmo tempo, torce veladamente para que o abril de 2010 seja mais vermelho – leia-se violento, sangramento — e respingue na candidatura da ex-ministra Dilma Rousseff (PT). Essa é a sua leitura do editorial?
João Pedro Stedile – Nós estamos acostumados com as declarações ideológicas desse jornal. Ficamos impressionados com a clareza com que defendem os interesses do latifúndio, da minoria privilegiada. O Estado de S. Paulo é o principal porta-voz das oligarquias rurais e dos setores mais atrasados da burguesia brasileira. Não aceitam qualquer mudança social. Há mais de 100 anos defendem a ferro e fogo os privilégios da classe dominante.
Assim como antigamente faziam anúncios de venda de trabalhadores escravos, agora se colocam contra a reforma agrária. Qualquer movimento de trabalhadores organizados é um problema. Por isso, tratam o nosso movimento como uma ameaça à toda a sociedade, que deve ser acompanhado com preocupação e combatido por parlamentares, juízes, órgãos de inteligência e formadores de opinião.
Para isso, o jornal tenta construir um clima de terror e medo, colocar um movimento de trabalhadores sem-terra como uma sombra na sociedade, criando uma paranóia que só convence aqueles que não conhecem a realidade do campo. A reforma agrária é uma ameaça, de fato, somente aos 50 mil proprietários com mais de 1.000 hectares que concentram 146 milhões de hectares (43% das terras agricultáveis). Eles representam 1% dos proprietários e devem se preocupar…
Viomundo – Já a Folha tenta jogar o MST contra o governo federal. É isso mesmo?
João Pedro Stedile – O estilo da Folha é mais fofoqueiro e costuma se dedicar à pequena política. São fofocas de salão. Acredita que pode alterar a luta de classes com factoides. Investe em fofocas para tentar criar contradições vazias entre o nosso movimento e o governo federal, ignorando a situação dos trabalhadores rurais e a lentidão para a criação de assentamentos. Na atualidade, prioriza a criação de factoides em defesa da candidatura de José Serra a presidente e da continuidade dos tucanos à frente do governo do estado de São Paulo. O sonho do seu proprietário é ser um intelectual respeitado, mas não passa de um pequeno-burguês lambe botas dos grandes interesses da burguesia.
Viomundo – Como caracterizaria o comportamento dos outros veículos da chamada grande imprensa?
João Pedro Stedile – Os mais perniciosos são os veículos das Organizações Globo. O Globo e o Jornal Nacional são manipuladores contumazes. Conseguem unir com genialidade a ideologia burguesa com os seus interesses particulares para ganhar dinheiro sustentando ideologicamente a desigualdade da nossa sociedade. Espero que o projeto de banda larga popular e gratuita enfraqueça o poder de manipulação da televisão aberta e enterre o papel da Globo na sociedade brasileira.
Viomundo – Já li uma entrevista sua onde coloca o governo Lula e o FHC em pé de igualdade. Acha que são iguais mesmo?
João Pedro Stedile – Na forma de tratamento dos movimentos sociais, não são iguais, não. FHC tentou cooptar, isolar e criou condições para a repressão física, que resultou nos massacres de Corumbiara e Carajás. Já no governo Lula há mais diálogo. Nunca houve repressão por parte do governo federal.
Infelizmente, em ambos os governos, não houve desconcentração da propriedade da terra, o que é o fundamental. A reforma agrária é uma política governamental, executada pelo Estado em nome da sociedade, que visa desapropriar grandes propriedades de terra que não cumprem a função social. É uma bandeira republicana, que se insere nos direitos democráticos. Para isso, procura democratizar o acesso à terra e desconcentrar a propriedade fundiária. Dentro desse conceito, durante os governos FHC e Lula, os latifundiários aumentaram o controle das terras.
Está em curso um movimento de contra-reforma agrária, realizado pela lógica do capital de empresas transnacionais e do mercado financeiro. De acordo com o censo de 2006, 15 mil fazendeiros com mais de 2 mil hectares controlavam nada menos que 98 milhões de hectares. Também houve uma maior desnacionalização das terras, com a ofensiva do capital estrangeiro. Somente no setor sucroalcooleiro, em apenas três anos, o capital estrangeiro se apropriou de 27% de todo setor, segundo o jornal Valor Econômico.
Apesar disso, reitero as diferenças. O governo FHC era o legítimo representante da aliança entre uma parcela da burguesia brasileira subordinada aos interesses do capital internacional e financeiro. Já o governo Lula representa um outro tipo de alianças. É um governo de conciliação de classes, que juntou dentro dele setores da burguesia brasileira e setores da classe trabalhadora. E por isso é um governo mais progressista do que o governo FHC.
Viomundo – Em agosto de 2009, o MST acampou durante duas semanas em Brasília, além ter feito marchas e protestos por todo o país. Na ocasião, apresentou uma pauta de reivindicações e estabeleceu uma negociação ampla com o governo federal para a retomada da reforma agrária. Como está essa agenda?
João Pedro Stedile – Nas negociações, o governo se comprometeu a assinar a portaria que revisa os índices de produtividade e investir mais 460 milhões para as desapropriações de latifúndios, além de demandas para resolver problemas nos estados. Infelizmente, não houve ainda atualização da portaria dos índices de produtividade nem aporte de recursos para reforma agrária.
Esperamos que o governo cumpra a sua palavra. Dessa forma, poderão, pelo menos, resolver problemas pontuais e conflitos que se somam nos estados. Há mais de dois anos processos assinados para desapropriação de fazendas estão parados por falta de recursos do Incra. O governo precisa investir, no mínimo, 1 bilhão de reais para zerar o passivo de fazendas, que estão em processo final de desapropriação. O orçamento previsto para o ano é apenas 460 milhões de reais.
Viomundo – Este ano teremos eleições presidenciais. Eu sei que oficialmente o MST não apóia este ou aquele candidato. Mas a base assim como a direção tem suas preferências. Em que candidato não votariam de modo algum?
João Pedro Stedile – Nós fizemos um debate com os movimentos sociais que se articulam na Via Campesina Brasil. Há um sentimento de que devemos colocar energias para impedir que o Serra ganhe as eleições. Não se trata de julgamento pessoal ou partidário, mas de uma avaliação do tipo de projeto e de forças sociais que ele representa.
Viomundo – Em que candidatos poderiam votar?
João Pedro Stedile – Em toda a nossa trajetória, o MST nunca tirou deliberações sobre nomes para votar nas eleições. Mas naturalmente a militância tem consciência política de votar – em todos os níveis – em candidatos que sejam comprometidos com a reforma agrária e com as mudanças necessárias para o Brasil. A partir disso, cada um, de acordo com a sua consciência, faz a escolha. O voto é uma manifestação da liberdade política individual, que deve se expressar em torno de projetos de sociedade.
Viomundo – Nas eleições deste ano, o jogo será muito sujo. Como vocês pretender pretende agir neste contexto, já que as forças conservadoras tentarão queimar a candidatura Dilma, valendo-se do MST?
João Pedro Stedile – Realmente, a campanha eleitoral deste ano será muito disputada e dura. As elites e seus meios de comunicação já fizeram diversas reuniões para se articular e se organizar, numa verdadeira guerra ideológica. Eles farão de tudo para manipular fatos e criar factoides para favorecer o Serra. Ao mesmo tempo, caso não tenham condições de ganhar, tentarão fazer com que uma vitória da Dilma esteja condicionada e comprometida em não fazer mudanças. Para isso, vão atacar sistematicamente todas as lutas sociais e movimentos populares, para evitar que atuem como força social nas eleições e discutam projetos de sociedade. Ou seja, vão sobretudo criminalizar a luta social. Esse é o jogo.
Nós estamos acostumados a ele e, independentemente de candidaturas, continuaremos fazendo o nosso papel, ou seja: organizar os trabalhadores do campo para que lutem por seus direitos e melhorem as suas condições de vida. Até os intelectuais dos tucanos sabem que nunca houve em toda a história da humanidade mudanças sociais a favor do povo e dos mais pobres sem que eles se organizassem, lutassem e conquistassem.
No fundo, o que a grande mídia teme é a força organizada dos trabalhadores. Por isso, tentam criar um clima de desânimo, contrário às lutas sociais, para evitar uma nova ascensão do movimento de massas que altere a correlação de forças na sociedade. A força da classe dominante está no poder econômico e na mídia, com o controle da ideologia. A força dos trabalhadores está na sua capacidade de mobilizar as maiorias. Para quem não acredita em luta de classes, podem esperar cenas cotidianas desse confronto.
Viomundo – Muita gente defende realmente a reforma agrária, mas discorda de ocupações que consideram violentas. O senhor concorda com esse tipo de ocupação? O que diria as essas pessoas?
João Pedro Stedile – O MST já usou todas as formas de luta possíveis e legítimas na luta pela democratização da terra: abaixo-assinados, 800 mil se cadastraram nos Correios (nos tempos do FHC), marchas de mais de 1.500 quilômetros, manifestações de rua e também ocupações de terras. Se houvesse vontade política e força social suficiente, não precisaríamos fazer ocupações de terra. Isso representa um enorme sacrifício para as famílias. As famílias não fazem ocupações porque gostam. A história de dominação do latifúndio é que fez com que as ocupações se transformassem na principal forma de luta dos camponeses.
As pessoas que criticam as ocupações de terra deveriam saber que todos os assentamentos que existem foram frutos de ocupações e pressão de acampamentos. Ao mesmo tempo, deveriam saber também que a maioria dos grandes proprietários não obteve suas terras por meio do trabalho, mas se apropriou ilegalmente de terras publicas por meio da apropriação indébita. O que as pessoas dizem quando o banqueiro Daniel Dantas usa recursos de origem desconhecida para compra 56 fazendas com mais de 400 mil hectares no sul do Pará? Algumas delas são griladas de terras públicas e portanto nem sequer escritura têm.
Viomundo – E a ocupação da Cutrale?
João Pedro Stedile – Todo mundo criticou a nossa ocupação na Cutrale, porque os companheiros numa atitude desesperada derrubaram pés de laranja. No entanto, não ouvimos críticas na mesma altura pelo fato de a Cutrale se apropriar de mais de 5 mil hectares de terras públicas, registradas como propriedade da União, e que o Incra move um processo para despejá-la. Os trabalhadores são condenados por destruir menos de um hectare de pés de laranjas, mas a Cutrale pode grilar terras, criar um cartel no setor do suco e, com isso, nos últimos dez anos, segundo o IBGE, levar à falência mais de 20 mil pequenos e médios citricultores, que foram obrigados a destruir mais de 200 mil hectares de laranja no estado de São Paulo !!!
Viomundo – O MST não receia perder o apoio de parte da sociedade em função das ocupações de terra?
João Pedro Stedile – É possível que determinados momentos setores da sociedade se deixem influenciar pela campanha sistemática da imprensa. Mas quando isso não tem base real e verdadeira, as pessoas se dão conta de que há manipulação. A mídia burguesa já fez muita campanha contra o Lula, mas a população continua dando apoio ao seu governo.
Na base social, entre os pobres, entre os trabalhadores, o MST continua tendo muito apoio. Eu diria até que o MST nunca teve tanto apoio entre os setores organizados e conscientes da nossa sociedade. Esses setores se deram conta que as elites não querem abrir mão da concentração da propriedade e, por isso, nos atacam com tanta veemência.
Se fosse pela vontade das elites, nós e os demais movimentos sociais já tinham desaparecido. Estão nos perseguindo no Congresso Nacional: em oito anos, criaram três CPIs contra o MST. Não há registros na história do Brasil de perseguição desse tipo contra nenhum movimento social ou partido político. No entanto, continuamos firmes, porque a causa da reforma agrária é justa e necessária para o país.
No fundo, todo mundo é a favor da reforma agrária e contra o latifúndio. Chegará o dia em que a verdade será maior do que a manipulação.
Viomundo – Mas o apoio da sociedade civil à reforma agrária é importante, concorda?
João Pedro Stedile – Com certeza. Infelizmente, vivemos um momento de refluxo do movimento de massas em geral. E isso diminui a força daqueles que defendem mudanças no campo e nas cidades.
Veja a dificuldade para aprovar a lei que reduz 44 para 40 horas a jornada de trabalho, já em vigor em todo o mundo industrializado. Veja a dificuldade para aprovar o projeto de lei que determina a desapropiaçao de fazendas com trabalho escravo. Veja a greve dos professores do Estado de São Paulo. A sociedade não fez ainda ações concretas para apoiar demandas tão justas. As organizações populares e progressistas não têm tido força para fazer as mudanças. Pelas mãos do agronegócio, o Brasil se transformou no maior consumidor mundial de venenos agrícolas (são 720 milhões de litros por safra, que agridem o meio ambiente, destroem o solo, as águas e vão para seu estômago dentro dos alimentos) e a sociedade não reage! Mas isso é temporário. Outro ciclo virá com o reascenso dos movimentos de massas e de maior mobilização das forças populares. Aí, teremos as mudanças necessárias, como a reforma agrária. Não se pode pensar em reforma agrária separada das demais mudanças que a sociedade brasileira precisa.