Michael Kepp
Memória de minha puta gratuita
Não havia pensado tornar público meu passeio pelo mundo da prostituição até ler que livrarias em São Paulo e no Paraná questionavam a venda do novo livro de Gabriel García Márquez, "Memórias de Minhas Putas Tristes".
Esses livreiros não ficaram alarmados com o fato de o romancista mais importante da América Latina, ganhador do Prêmio Nobel, ter-se tornado um pornógrafo. O que os incomodou foi o título do livro. E a reação deles revela o preconceito generalizado que circunda a mais antiga das profissões.
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Meu objetivo não é romantizar a profissão; talvez nenhuma outra faça mais para destruir a auto-estima e a saúde de uma mulher
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Eu também partilhava desse puritanismo -dormir com uma prostituta seria uma experiência sórdida e vergonhosa- quando, 23 anos atrás, fui forçado a repensar essa visão. Eu havia acabado de me mudar para o Rio de Janeiro e tinha me tornado amigo de um carioca que me achava careta e carente.
Ele sugeriu que, já que eu não havia encontrado minha garota de Ipanema nem de Botafogo nem de nenhum outro bairro, eu visitasse o Lido, a zona do meretrício de Copacabana. Quando eu disse "não" e balbuciei alguma bobagem sobre sexo sem emoção, ele sugeriu que eu visse a ida ao Lido como antropologia. E ofereceu fazer da pesquisa o meu presente de aniversário.
Apesar de a sua oferta desafiar o que eu considerava um tabu sexual, também apelava à minha crença de que tabus são feitos para serem quebrados. Então, eu disse "sim" sob a condição de vestir o manto de antropólogo. Eu havia, afinal, sempre me perguntado por que as prostitutas usam perfumes que cheiram como se o nome fosse "l'eau de sovaco".
Quando entrei em uma boate do Lido chamada "Holliday", meus pensamentos ficaram libidinosos, nada analíticos, enquanto eu dançava com uma variedade de mulheres. Mas a dançarina que mais me atraiu era a que parecia menos interessada. Minha luta para conquistá-la terminou com um beijo que pareceu durar horas.
As preliminares acabaram quando nós dois, com meu amigo e sua acompanhante, voltamos de carro para a casa dele. Eu comprei pipoca para ela, que parecia preferir o doce aos meus beijos. Eu joguei com ciúmes o saquinho pela janela, e o clima mudou. Eu a tratara como objeto. Ela virou um robô. Mas o sexo, mesmo estando ela no "piloto automático", foi melhor do que o que tive com muitas outras mulheres.
Mais revelador ainda foi ver como esse "pas de deux" mudou minha relação com meu amigo. Na manhã seguinte, depois de levar as mulheres para casa, nós nos despedimos não com um tapinha nas costas mútuo, mas com um longo abraço. Foi quando me dei conta de que minha aventura com a prostituta, que não foi sórdida nem vergonhosa, também havia sido um ritual que tornou mais sólida a amizade com ele. Admito que seja machista, mas nossa amizade dura até hoje.
Desafiando um tabu, abri possibilidades e acabei com um preconceito. Também comecei a questionar a hipocrisia daqueles que se mostram ofendidos por essa profissão. Apesar de a prostituição existir em várias formas, só as versões mais explícitas são condenadas pelos homens -os mesmos que, em sua maioria, usaram os serviços das prostitutas.
Meu objetivo não é romantizar a profissão. Talvez nenhuma outra faça mais para destruir a auto-estima e a saúde de uma mulher. E eu obviamente condeno a prostituição infantil, que é o meio mais covarde de roubar a infância daqueles que a sociedade mais deveria proteger.
Só quero dizer que não há nada pecaminoso ou vergonhoso em uma profissão a que recorrem as mulheres para sobreviver. Ainda assim, o puritanismo à volta dela é profuso. Pode ser encontrado não só no preconceito dos livreiros paulistas e paranaenses, mas no "Aurélio", que lista como sinônimos para "prostituir" os verbos "corromper", "degradar" e "desmoralizar". O que é realmente desmoralizante é definir um problema sócioeconômico em termos morais.
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MICHAEL KEPP , jornalista norte-americano radicado há 22 anos no Brasil, é autor de "Sonhando com Sotaque -Confissões e Desabafos de um Gringo Brasileiro" (ed. Record)
www.michaelkepp.com.br