Mnemosýne e lesmosýne:
os atributos das Musas em Hesíodo
Nove filhas nascidas do grande Zeus:
Glória, Alegria, Festa, Dançarina,
Alegra-coro, Amorosa, Hinária, Celeste
e Belavoz, que dentre todas vem à frente (2).
Hesíodo. Teogonia vv. 75-79.
Na crítica de Platão a Homero encontra-se em questão o papel do aedo (aoidós) como educador. O filósofo tem, para com o poeta, uma atitude ambígua: ele ao mesmo tempo o elogia e o critica. Reconhece-o como educador dos gregos, mas censura o efeito que suas composições podem ter na formação de jovens educados em uma cidade fundada sobre as virtudes da justiça e da temperança. O mesmo reconhecimento e a mesma atitude crítica, implícitas ou explícitas, em relação ao aedo, encontramos nos poetas, historiadores e filósofos que se apropriaram dele, já antes de Platão. A atitude crítica em relação a Homero mostra-se, portanto, não como exclusiva de Platão, mas como uma constante entre os pensadores gregos.
Mesmo entre os aedos, os relatos de Homero são tomados, seja como modelos para suas próprias composições, seja como contraponto aos valores defendidos pelos heróis. Hesíodo, seguidor, como Homero, da técnica do hexâmetro dactílico, será o primeiro a afastar-se da épica homérica, em razão não de sua forma, mas de seu conteúdo. Diferentemente de Homero, cujo parâmetro ético-político sustenta-se entre o heroísmo guerreiro e a confrontação com a vontade dos deuses, o tom da poesia hesiódica, por sua vez, é genuinamente moralizante, religioso e didático. No proêmio da Teogonia, encontramos um Hino às Musas, em tudo semelhante aos Hinos homéricos, cujo diferencial está na relação privilegiada que Hesíodo estabelece com as Musas.
A despeito de iniciar o proêmio da Teogonia (3), fazendo a habitual invocação às Musas, Hesíodo quebra com a tradição homérica alguns versos adiante, quando, definindo a nova condição do aedo, instaura-se como o porta-voz da divindade.
Elas (as Musas) certa vez, a Hesíodo, ensinaram belo canto
Quando ovelhas ele apascentava sob o Hélicon divino
(22-23) (Trad. Brandão. In: Hartog, 2001, p. 25).
Apesar de Hesíodo continuar nomeando a sua atividade como canto (aoidé) (4), a distinção entre ele, Homero e os demais aedos de sua época justifica-se de duplo modo: primeiro, pelo fato de as Musas dirigirem-se nominalmente a ele, e segundo, pela constatação de ter sido ele, o primeiro a assumir a autoria de seu trabalho (5). Na seqüência desta passagem, deparamo-nos com outra expressão pela qual o bardo define a atividade das Musas e a sua própria.
E a mim, antes de tudo, as deusas, estas palavras (mýthon) dirigiram
Musas Olimpíades, filhas de Zeus que tem a égide
(24-25) (Tradução de J.L. Brandão. p.25).
Quando Hesíodo emprega, no verso 24, a expressão mýthos (6) para indicar a palavra das Deusas para ele, esta "tem o sentido de palavra divina que se apresenta em forma de palavra humana e que por assim se apresentar revela o canto como fonte de conhecimento relativos ao sentido do ser e às formas divinas do mundo" (Torrano, 1987, p.9). Ao apresentarem-se para Hesíodo, as Musas habilitam-no como portador do conteúdo de seus discursos, assim como lhe revelam o seu próprio conhecimento acerca da origem, do gênero, do ser e do devir dos deuses do Olimpo.
"Pastores agrestes, maus opróbios (elénkhea), ventres só,
Sabemos muitas mentiras (pseúdea) dizer a fatos semelhantes (etýmoisin homoía)
E sabemos, quando queremos, verdades proclamar (alethéa gerýsasthai)"
Esse novo discurso é mais flexível, e nele Hesíodo vem anunciar o seu próprio critério de verdade com o aval das Musas (7). Se as Musas homéricas pronunciam "mentiras semelhantes a fatos verdadeiros", as Musas hesiódicas ultrapassam-nas em poder, pelo fato de permitirem-se não apenas proferir o discurso tradicional, mas ainda terem o privilégio de declarar "verdades". Detentoras desse atributo, elas transmitem-no ao aedo beócio, responsabilizando-o pela transmissão desse mýthos aos seus ouvintes. Hesíodo formaliza essa função ao afirmar:
E a mim, como cetro, deram um ramo de florido loureiro
Que cortaram, admirável
(30-31) (Trad. Brandão, p.25).
Devidamente habilitado (9), o aedo de Ascra passa a ter a competência e a autoridade necessárias para revelar os saberes das Musas entre os mortais.
Mas a magnanimidade das legítimas filhas de Zeus para com Hesíodo ultrapassa esse domínio, pois além de dotarem-no de seu próprio saber e, portanto, de sua própria verdade como o mesmo declara solenemente, estas
Insuflaram-me um canto
Divino, para que celebrasse o que será e o que foi antes
E mandaram-me hinear a raça dos ditosos que sempre são
E a elas primeiro e por último sempre cantar
(31-34) (Trad. Brandão, p.25).
Portador dessa insígnia admirável, o pastor ultrapassa a sua condição humana e transforma-se num homem divino, num profeta, capaz de desvendar os mistérios do futuro e do passado, graças ao poder divinatório e ontofânico das Musas, quando estas assim determinarem. Este dom da clarividência elas recebem de sua mãe, Memória (Mnemosýne). Só esta é capaz de resgatar os acontecimentos esquecidos e revelá-los às Musas. Estas, por sua vez irão transmiti-los a seus legítimos representantes no mundo dos homens, os aedos.
Diferençando-se de Homero que resgata e recria para sua época as leis, os costumes e as tradições do tempo passado, Hesíodo, por seu lado, além do passado, fala dos acontecimentos vivenciados por ele mesmo, em seu próprio tempo, e ainda do futuro. Como elo da corrente envolvendo Memória, as Musas e ele próprio, o mesmo beneficia-se dessa relação recebendo diretamente das divindades o dom de cantar o passado, o presente e o futuro, pois estas, no Olimpo,
a Zeus pai
hineando alegram o grande espírito no Olimpo
dizendo o presente, o futuro e o passado
vozes aliando (36-39).
Cantando infatigavelmente os fatos revelados por Memória, as Musas utilizam seu canto para alegrar e agradar o espírito de Zeus, o detentor da prudência (métis) entre os deuses e os homens (O Escudo 27-29), assim como estabelecem a oposição entre o mundo dos deuses do Olimpo e o mundo dos simples mortais. Tal habilidade as torna passíveis de reterem, da parte de Zeus, o dom da prudência e da sabedoria. Como resultado dessa mistura (migeîsa) entre reflexão e memória, as Musas encontram-se aptas tanto a rememorar como a esquecer as coisas sobres as quais falam. Ao dotar suas Musas dessa memória reflexionante, Hesíodo concede-lhes a capacidade de decidir não apenas sobre os fatos a serem lembrados ou esquecidos, mas acerca do conteúdo de seu discurso, onde elas tanto podem proferir verdades como mentiras.
Diferenciando-se das Musas homéricas, cujo canto promete ser verdadeiro, embora nem sempre os discursos de seus personagens representem verdades, como na aparição de Ulisses disfarçado de mendigo diante de Penélope na Odisséia (XIX100 ss.), as Musas hesiódicas anunciam sua dupla faculdade em pronunciar discursos verdadeiros ou mentirosos. Quando Hesíodo dá as Musas o poder de decisão sobre o discurso mais conveniente a ser utilizado, se aquele capaz de representar mentiras semelhantes a verdades, ou aquele apto a proclamar verdades, este realiza uma quebra com a tradição poética anterior a ele, onde o canto das Musas era marcado pelo critério de narrar mentiras semelhantes a fatos reais e não a verdade. O que Hesíodo parece condenar, através das Musas, não é o fato de a verdade ser adotada como juízo de valor, mas aqueles que, "em sua rudez, não distinguem pseúdea de aléthea, tomando tudo por verdadeiro" (Brandão, 2000, p.20).
Nessa correlação entre mentira (pseudés) e verdade (alethés), se verdade for tomada como a negação de esquecimento (léthe), isto é, como "coisas que se rememoram ou que se tiram do esquecimento" (Brandão, 2000, p.16), então teríamos dois níveis de antagonismos, compreendendo, por um lado, dizer mentiras (pseúdea légein) oposto a verdades proclamar (alethéa gerýsasthai) e, por outro, mentiras (pseúdea) contrapondo-se a fatos semelhantes (etýmoisin homoía). Mas esse jogo de palavras utilizado por Hesíodo e devidamente desmembrado por Brandão (2000, p.17), não é tão inocente assim e comporta uma estrutura maior, capaz de conter, em primeiro plano, a oposição entre mentira e fatos semelhantes e, secundariamente, o conteúdo dos fatos semelhantes contraposto ao de verdades proclamar. Não é uma mera oposição entre verdade e mentira, portanto, a discussão central dos versos 27 e 28, mas a valorização da verdade como um atributo específico das Musas.
Em Hesíodo, portanto, deparamo-nos com a mesma relação implícita entre a Musa e a Memória encontrada em Homero, assim como a mesma atribuição às Musas resultante da união entre Zeus e Memória.
Na Piéria gerou-as, da união do Pai Cronida,
Memória (Mnemosýne) rainha nas colinas de Eleutera,
Para oblívio (lesmosýnen) de males e pausa de aflições (53-55).
Frutos dessa mistura, as Musas têm a propriedade não apenas da memória (mnemosýne) como do esquecimento (lesmosýne). O esquecimento das Musas, porém, é seletivo. Afinal, elas foram geradas para esquecimento dos males e pausa dos sofrimentos. Como filhas de divindades tão opostas, elas trazem em si o poder da memória e da não-memória. Dotar as Musas de uma não-memória não significa representá-las desprovidas de toda e qualquer memória, mas dotá-las de uma memória mais organizada, mais seletiva, mais influenciada por Zeus, o responsável pela distribuição das honras e dos castigos, na ética hesiódica.
O impacto dessas reflexões acerca do caráter ambíguo das Musas certamente tem como alvo, embora indireto, Homero e, com ele, toda uma geração de aedos e rapsodos. Todo o proêmio da Teogonia parece ser delimitado pela preocupação em estabelecer um contraponto entre a relação de intimidade de Hesíodo com as Musas, a ponto de o canto das divindades confundir-se com os seus e, a relação de reverência e submissão de Homero às mesmas Musas. Distanciando-se do conteúdo da épica homérica, cuja narrativa centra-se, sobretudo, na ação humana, a Teogonia concentra sua temática no divino, mais especificamente em Zeus, cujo caráter organizador e ordenador transparece no canto das Musas:
Ele reina no céu
tendo consigo o trovão e o raio flamante,
venceu no poder o pai Crono e os imortais
bem distribuiu e indicou cada honra;
isto as Musas cantavam, tendo o palácio Olímpio
(71-75).
As Musas cantam para Zeus e ensinam para Hesíodo esse canto. Sentindo-se privilegiado em receber delas o dom sagrado de ser aedo, o bardo exulta:
Próspero é quem as Musas
Amam: doce lhe corre, da boca, a voz.
Pois se alguém, triste no ânimo recém-ferido,
Teme com aflito coração, tão logo o aedo,
Servo das Musas, a fama dos primeiros homens
Cante - e os ditosos deuses que têm o Olimpo,
Súbito esquece ele as aflições e de nenhuma preocupação
Se lembra: rápido o revolvem os dons das deusas
(96-103) (Trad. J. L. Brandão, 2001, p.25).
Hesíodo regozija-se de tal maneira com essa dádiva, a ponto de incorporar os atributos das Musas e julgar-se ele próprio apto a fazer seus ouvintes lembrarem ou esquecerem os seus descontentamentos e os seus desgostos. Nessa integração de seu canto com o das Musas, Hesíodo pede às Musas para suscitarem nele o mesmo canto divino da qual são dotados.
Alegrai, filhas de Zeus, daí ardente canto,
gloriai o sagrado ser dos imortais sempre vivos
(104-105).
Inebriado por esse canto divino, Hesíodo intercede às Musas para ajudarem-no a construir o seu canto humano, acerca da origem dos deuses, com o mesmo conteúdo de seus próprios cantos, pois só inspirado pelas divindades, este conseguirá narrar a genealogia dos deuses gregos.
Dizei-me isto, Musas que tendes o palácio Olímpio,
dês o começo e quem dentre eles primeiro nasceu (114-115).
Dessa similitude entre o canto das Musas e a Teogonia, Hesíodo "constitui a imagem terrena, humana e finita do canto celeste, divino e eterno das musas no Olimpo" . Afinal, as filhas de Memória e Zeus portam, de nascimento, a preocupação com o canto (Teogonia 60-61). Envolvidas por esse dom de cantar e alegrar os seres divinos serão elas que,
nas festas, pelas bocas amável voz lançando
dançam e gloriam a partilha e hábitos nobres
de todos os imortais, voz e bem amável lançando (65-67).
Ao cantarem para os mortais as leis (nómous) e os costumes (éthé) dos imortais, as Musas hesiódicas traçam o mesmo limite já antevisto em Homero, entre o domínio das leis e dos costumes humanos e os divinos. Embora o bardo comece a afastar-se da técnica predominantemente oral da poesia grega, ainda encontramos nele resquícios dessa prática. A poesia de Hesíodo ecoa, portanto, como a tentativa de tornar mais racionalizado o mundo dos deuses e dos homens. Sem dúvida, no percurso que vai de Hesíodo a Platão, estas questões serão retomadas e reformuladas incessantemente, porém será no projeto ético-político platônico da construção da cidade com palavras que a exigência de uma poesia pensada pela filosofia e, portanto, guiada por princípios críticos e racionais terá o seu pleno desenvolvimento.