O que somos além de fantasmas em corpos que vagam entre armações de concreto? Talvez, o concreto seja o único elemento real na imensa miragem que compõe nosso deserto.
Somos um resumo, o reflexo da interpretação medíocre de quem nos vê e ouve. Nossa alma é um segredo guardado de nós mesmos. Podemos ser tudo! Para nascer só temos que esquecer o que nos convencemos que somos, engravidar algum novo caminho.
"O mundo é para quem nasce para o conquistar e não para quem sonha que pode conquistá-lo"
Fernando Pessoa provou com essas linhas que conhecia a Verdade e ela também me provaria...
Sempre imaginei que se a Noite pudesse estabelecer morada em algum lugar, escolheria a Lapa ou Copacabana. Não existem outros terrenos que encarnem melhor sua essência do que esses dois bairros. A Noite, mãe adotiva e generosa que acolhe sem repreensões ou preconceitos os desgarrados da Luz.
A ebulição da Lapa naquela sexta-feira me puxou de volta dos meus devaneios com as palavras. As palavras...Esse código mágico que inventou o mundo... Sempre me fascinaram... Desci mais um gole de cerveja, sentir seu deslizar gelado pela garganta me resgatou do torpor dos pensamentos.
Deparei-me comigo no espelho daquele bar ao lado do Asa Branca que há tantos anos eu freqüentava e ri da personagem que eu havia feito de mim mesmo. Um gótico tropical que tinha aversão aos tons claros, cavanhaque bem feito e um olhar perdido na melancolia. Somos vampiros condenados a vagar sob a capa azul-marinho de um céu noturno, sempre buscando saciar a sede infinita dos instintos.
Os instintos, os propulsores da vida.
Eu pressenti o seu perfume antes da sua presença. Ela atravessou minha vista, se aproximou do balcão e, com uma voz sensualmente rouca, pediu ao atendente um maço de cigarros.
Ruiva, alta, cabelos compridos em cachos derramados, algumas sardas pontilhando um rosto claro e de desenho delicado onde crepitavam dois olhos verdes. Um aroma doce de rosas coloriu o ar, fiquei inebriado. Ela me olhou por alguns segundos como se tentasse me reconhecer. Mas tão rápido como chegou, se foi...
Reconheci o suor que brotou da minha pele, o filho da ansiedade. Eu devia estar inspirado naquela noite, porque logo me badalaram na memória uns versos franceses:
"...Não mais hei de te ver senão na eternidade?
Longe daqui! Tarde demais! Nunca talvez!
Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,
Tu que eu teria amado, tu que bem o viste!"
Jamais duvidei que coincidências são sinais do destino e a lembrança repentina desses versos só podiam ser um aviso. Paguei a conta e corri para segui-la.
Ela cortou os Arcos, entrou na Men de Sá e continuou andando para lugar nenhum. Os passos eram firmes, determinados. Havia um objetivo que eu não podia prever. Fomos, os dois, ligados por um fio invisível, percorrendo o mesmo caminho. Cheguei a pensar que ela morasse no Bairro de Fátima, foi quando sumiu por uma porta inesperada.
Boate Carrossel... Fiquei acompanhando a porta que ainda se fechava com se encarasse um portal para outra dimensão. Ela havia entrado na Boate Carrossel. Não me foi permitido desistir naquele ponto. Entrei.
Havia penumbra e mesas espalhadas por todo o salão, na extremidade se elevava um palco. Fui conduzido por um Maître que me acomodou num dos poucos lugares vazios. Forçava-me a enxergar na tentativa de localizá-la. Em vão... Quase convencido que eu havia a perdido, anunciam um show de uma stripper. Era ela!...
A penumbra se apagou em escuridão por uns trinta segundos. Um foco de luz atingiu o palco fazendo reluzir a presença de Eva que brilhava num vaporoso disfarce de Anjo. Asas enfeitavam uma camisola de tecido tênue que deixava revelar a lingerie rosa e minúscula que cobria . Um som de Madonna lentamente cresce aos ouvidos, Justify My Love... Ela inicia sua dança, seu feitiço...
Ver aquele corpo alvo, nu e ondulando como serpente foi o golpe de misericórdia. Deixei-me desabar como a árvore que cede ao poder da erosão. Em suas costas, na altura do ombro, havia um cavalo alado tatuado. Cobrindo a coluna, na vertical, uma tatuagem com a palavra Liberdade ornava o seu dorso. Fiquei de tal modo extasiado por aquela visão que senti meu coração pulsar na cabeça.
Assim que terminou a apresentação, gritei pelo garçom e pedi que entregasse a menina um bilhete que improvisei no guardanapo:
"Sou um cavaleiro errante, um paladino.
Seguindo teus passos, vim cumprir meu destino.
Rompi o caminho fadado de luz e treva
E descobri que meu sonho se chama Eva.
Meu nome é Dante. Por favor, venha tomar um drink comigo. Estou esperando na mesa ao lado da saída."
Ela ressurgiu no salão, perguntou alguma coisa ao garçom, ele respondeu apontando na minha direção. Ela veio.
Simpática e sorridente disse que amou meu bilhete. Morava em Copacabana, mas era de Piracicaba; estava no Rio trabalhando; precisava de dinheiro, pois seu pai havia falecido e deixado sua mãe numa situação dramática. Sua especialidade eram os shows de striptease, atuava em várias boates e aceitava convites para encontros íntimos quando a proposta lhe interessava.
Fiz, sem pestanejar, minha maior oferta. Despertamos enroscados, no dia seguinte, nos lençóis do Hotel Fluminense, na Rua dos Inválidos.
A paixão é o melhor exagero que podemos cometer.
Bastou uma semana para assumirmos um namoro. Levei-a para conhecer minha família e suavizei suas dores com muito amor, bastante carinho, inúmeros buquês, diversos presentes, umas poucas jóias e algum dinheiro. Falávamos todos os dias por telefone e nos víamos nos finais de semana. Ela continuava com os shows, mas os encontros íntimos eram um privilégio só meu.
O tempo pingou rápido, completamos um mês nessa relação simbiótica.
Certo dia, o telefonema diário não aconteceu. Insisti, mas o número estava desligado. Aguardei a semana seguinte, nenhum contato. Fui até o prédio onde ela morava em Copacabana, sem saber em qual apartamento ela alugava o quarto, ninguém identificou a descrição que eu passei, não a conheciam. Rodei pelas boates em que ela fazia seus shows. Desapareceu.
Dois meses se passaram no silêncio. Acordei numa manhã persuadido de que aquela história fora uma ficção, um delírio que eu tivera durante o sono. Tudo irreal. Nada existiu.
Retomei minha rotina e com o ânimo renovado voltei ao bar da Lapa. Encostei-me no balcão, mas não me reconheci na imagem gótica que vinha do espelho.
Eva... Subitamente, senti uma ponta de saudade.
Postei-me à entrada do botequim e fiquei observando os Arcos e o clima de festa que explodia por todos os lados. Abandonei-me na euforia daquele caos.
Pedi um conhaque e sorvi cada gole dos demônios que habitavam a garrafa. Pedi que eles me levassem de volta ao dia que não vivi, que me trouxessem o beijo que não provei e que me deixassem abraçar novamente a mulher que não conheci.
Ah!... As palavras!... Sempre me fascinaram! Criam e desfazem Universos.
DANTE
Somos um resumo, o reflexo da interpretação medíocre de quem nos vê e ouve. Nossa alma é um segredo guardado de nós mesmos. Podemos ser tudo! Para nascer só temos que esquecer o que nos convencemos que somos, engravidar algum novo caminho.
"O mundo é para quem nasce para o conquistar e não para quem sonha que pode conquistá-lo"
Fernando Pessoa provou com essas linhas que conhecia a Verdade e ela também me provaria...
Sempre imaginei que se a Noite pudesse estabelecer morada em algum lugar, escolheria a Lapa ou Copacabana. Não existem outros terrenos que encarnem melhor sua essência do que esses dois bairros. A Noite, mãe adotiva e generosa que acolhe sem repreensões ou preconceitos os desgarrados da Luz.
A ebulição da Lapa naquela sexta-feira me puxou de volta dos meus devaneios com as palavras. As palavras...Esse código mágico que inventou o mundo... Sempre me fascinaram... Desci mais um gole de cerveja, sentir seu deslizar gelado pela garganta me resgatou do torpor dos pensamentos.
Deparei-me comigo no espelho daquele bar ao lado do Asa Branca que há tantos anos eu freqüentava e ri da personagem que eu havia feito de mim mesmo. Um gótico tropical que tinha aversão aos tons claros, cavanhaque bem feito e um olhar perdido na melancolia. Somos vampiros condenados a vagar sob a capa azul-marinho de um céu noturno, sempre buscando saciar a sede infinita dos instintos.
Os instintos, os propulsores da vida.
Eu pressenti o seu perfume antes da sua presença. Ela atravessou minha vista, se aproximou do balcão e, com uma voz sensualmente rouca, pediu ao atendente um maço de cigarros.
Ruiva, alta, cabelos compridos em cachos derramados, algumas sardas pontilhando um rosto claro e de desenho delicado onde crepitavam dois olhos verdes. Um aroma doce de rosas coloriu o ar, fiquei inebriado. Ela me olhou por alguns segundos como se tentasse me reconhecer. Mas tão rápido como chegou, se foi...
Reconheci o suor que brotou da minha pele, o filho da ansiedade. Eu devia estar inspirado naquela noite, porque logo me badalaram na memória uns versos franceses:
"...Não mais hei de te ver senão na eternidade?
Longe daqui! Tarde demais! Nunca talvez!
Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,
Tu que eu teria amado, tu que bem o viste!"
Jamais duvidei que coincidências são sinais do destino e a lembrança repentina desses versos só podiam ser um aviso. Paguei a conta e corri para segui-la.
Ela cortou os Arcos, entrou na Men de Sá e continuou andando para lugar nenhum. Os passos eram firmes, determinados. Havia um objetivo que eu não podia prever. Fomos, os dois, ligados por um fio invisível, percorrendo o mesmo caminho. Cheguei a pensar que ela morasse no Bairro de Fátima, foi quando sumiu por uma porta inesperada.
Boate Carrossel... Fiquei acompanhando a porta que ainda se fechava com se encarasse um portal para outra dimensão. Ela havia entrado na Boate Carrossel. Não me foi permitido desistir naquele ponto. Entrei.
Havia penumbra e mesas espalhadas por todo o salão, na extremidade se elevava um palco. Fui conduzido por um Maître que me acomodou num dos poucos lugares vazios. Forçava-me a enxergar na tentativa de localizá-la. Em vão... Quase convencido que eu havia a perdido, anunciam um show de uma stripper. Era ela!...
A penumbra se apagou em escuridão por uns trinta segundos. Um foco de luz atingiu o palco fazendo reluzir a presença de Eva que brilhava num vaporoso disfarce de Anjo. Asas enfeitavam uma camisola de tecido tênue que deixava revelar a lingerie rosa e minúscula que cobria . Um som de Madonna lentamente cresce aos ouvidos, Justify My Love... Ela inicia sua dança, seu feitiço...
Ver aquele corpo alvo, nu e ondulando como serpente foi o golpe de misericórdia. Deixei-me desabar como a árvore que cede ao poder da erosão. Em suas costas, na altura do ombro, havia um cavalo alado tatuado. Cobrindo a coluna, na vertical, uma tatuagem com a palavra Liberdade ornava o seu dorso. Fiquei de tal modo extasiado por aquela visão que senti meu coração pulsar na cabeça.
Assim que terminou a apresentação, gritei pelo garçom e pedi que entregasse a menina um bilhete que improvisei no guardanapo:
"Sou um cavaleiro errante, um paladino.
Seguindo teus passos, vim cumprir meu destino.
Rompi o caminho fadado de luz e treva
E descobri que meu sonho se chama Eva.
Meu nome é Dante. Por favor, venha tomar um drink comigo. Estou esperando na mesa ao lado da saída."
Ela ressurgiu no salão, perguntou alguma coisa ao garçom, ele respondeu apontando na minha direção. Ela veio.
Simpática e sorridente disse que amou meu bilhete. Morava em Copacabana, mas era de Piracicaba; estava no Rio trabalhando; precisava de dinheiro, pois seu pai havia falecido e deixado sua mãe numa situação dramática. Sua especialidade eram os shows de striptease, atuava em várias boates e aceitava convites para encontros íntimos quando a proposta lhe interessava.
Fiz, sem pestanejar, minha maior oferta. Despertamos enroscados, no dia seguinte, nos lençóis do Hotel Fluminense, na Rua dos Inválidos.
A paixão é o melhor exagero que podemos cometer.
Bastou uma semana para assumirmos um namoro. Levei-a para conhecer minha família e suavizei suas dores com muito amor, bastante carinho, inúmeros buquês, diversos presentes, umas poucas jóias e algum dinheiro. Falávamos todos os dias por telefone e nos víamos nos finais de semana. Ela continuava com os shows, mas os encontros íntimos eram um privilégio só meu.
O tempo pingou rápido, completamos um mês nessa relação simbiótica.
Certo dia, o telefonema diário não aconteceu. Insisti, mas o número estava desligado. Aguardei a semana seguinte, nenhum contato. Fui até o prédio onde ela morava em Copacabana, sem saber em qual apartamento ela alugava o quarto, ninguém identificou a descrição que eu passei, não a conheciam. Rodei pelas boates em que ela fazia seus shows. Desapareceu.
Dois meses se passaram no silêncio. Acordei numa manhã persuadido de que aquela história fora uma ficção, um delírio que eu tivera durante o sono. Tudo irreal. Nada existiu.
Retomei minha rotina e com o ânimo renovado voltei ao bar da Lapa. Encostei-me no balcão, mas não me reconheci na imagem gótica que vinha do espelho.
Eva... Subitamente, senti uma ponta de saudade.
Postei-me à entrada do botequim e fiquei observando os Arcos e o clima de festa que explodia por todos os lados. Abandonei-me na euforia daquele caos.
Pedi um conhaque e sorvi cada gole dos demônios que habitavam a garrafa. Pedi que eles me levassem de volta ao dia que não vivi, que me trouxessem o beijo que não provei e que me deixassem abraçar novamente a mulher que não conheci.
Ah!... As palavras!... Sempre me fascinaram! Criam e desfazem Universos.
DANTE