Já que o assunto é Papa, vi este texto e achei bastante interessante.
Não creio que agrade muito mas publico apenas como algo muito bom pra ler e pensar:
... u289.shtml
"Habemus papam"
O papa Bento 16 está no Brasil. Veio, entre outras razões, para reforçar a posição do catolicismo, que andou perdendo terreno por aqui. Pesquisa Datafolha publicada no domingo passado mostra que se declaram católicos 64% dos brasileiros acima de 16 anos. Em dezembro de 1996, data do levantamento anterior, esse número era de 74%. Os beneficiários diretos da "dieta romana" foram os evangélicos pentecostais, que, nesse período, viram sua representação saltar de 11% para 17%.
Somos felizes! Houve um tempo em que a disputa por fiéis se dava em termos de massacres e fogueiras de "hereges". Hoje as armas utilizadas se limitam a viagens pastorais e outras formas de propaganda.
O que me interessa é refletir um pouco sobre a briga de mercado das religiões. Para tanto, é útil recorrer ao polêmico conceito de meme, cunhado pelo biólogo Richard Dawkins em 1976 para designar unidades de informação cultural capazes de propagar-se entre mentes humanas de modo análogo àquele pelo qual genes se perpetuam em seres vivos. Exemplos emblemáticos são a tecnologia, a moda, piadas, factóides --e a própria religião, considerada como um complexo de memes, ou memeplexo.
Como pode uma idéia, que é imaterial, reproduzir-se de forma semelhante a organismos biológicos? Para os evolucionistas, esse não é um problema. Vírus de computador tampouco contêm material biológico e se espalham ainda mais rápido do que moléstias como a varíola e o ebola. Idéias, afinal, têm em comum com genes as características fundamentais da evolução: variação, competição e, principalmente, a possibilidade de influir no sucesso reprodutivo do ser vivo ou pelo menos levá-lo a replicar a própria tese. Tomemos um caso concreto, a utilização do garfo, por exemplo. Quando surgiram, no final da Idade Média, esses utensílios tinham apenas uma ponta. As variantes de dois, três e quatro dentes apareceram respectivamente para evitar que a carne girasse em falso e para oferecer uma superfície maior com a qual levar alimentos à boca. Modernamente, o "fenótipo" de quatro dentes é o predominante. No Oriente, entretanto, onde os pauzinhos são a ferramenta de comer mais utilizada, o meme do garfo não fez tanto sucesso. É até possível que deixar de levar as mãos sujas à boca através da comida tenha produzido efeitos salutares para os grupos que se utilizaram dos garfos, favorecendo assim sua sobrevivência. Isso entretanto, não é necessário para explicar a manutenção do hábito, que ensinamos às nossas crianças desde pequenas.
As religiões também podem ser descritas dessa maneira. O catolicismo, por exemplo, surgiu como uma variante do judaísmo. E, embora a Igreja Católica não goste muito de admitir, mudou bastante através dos tempos. Concorre com outros memeplexos --como os oferecidos pelos cultos evangélicos. No momento, está perdendo para eles, pelo menos no Brasil. Produz efeitos sobre as vidas das pessoas --que podem ser positivos, neutros ou negativos. Esses resultados ajudam ou atrapalham sua propagação. Uma religião que prescrevesse o sacrifício ritual de todos os seus membros aos 11 anos não duraria mais do que uma geração. Já uma que introduza hábitos de higiene ou induza à colaboração entre seus membros teria sua reprodução facilitada, pois adeptos seus viveriam e se reproduziriam mais do que os fiéis de credos menos "úteis".
Não estou aqui afirmando que as religiões com uma certa tradição sejam necessariamente benéficas para os que a praticam. Elas podem ser absolutamente neutras e só sobreviver porque ensinamos nossos filhos a imitar-nos os passos. Tampouco se pode descartar que sejam maléficas. É a tese, por exemplo, de Dawkins, que as descreve como vírus da mente. Sobreviveriam como efeitos colaterais adversos de mecanismos neurológicos com outras destinações. Para Dawkins a fé num Deus sobrenatural é o resultado de uma propensão exagerada a crer, que teria valor adaptativo ao fazer com que crianças obedeçam a seus pais sem considerar se o que eles dizem faz ou não sentido. Tal mecanismo é, na primeira infância, vantajoso. Evita que os pimpolhos experimentem por conta própria cada um dos perigos à sua volta.
Na mesma linha, outros evolucionistas como o filósofo Daniel Dennett ("Breaking the Spell") argumentam que o homem tem uma forte tendência a inferir a presença de seres animados onde não existe nada. A vantagem propiciada por essa preferência neurológica pelo equívoco é clara. Se eu saio correndo por ter tomado uma sombra por mamute enraivecido, faço o papel de bobo, mas não perco nada de importante (o amor-próprio não vale muito no passado darwiniano). Se, por outro lado, aplico algum ceticismo e exijo provas, evito dar uma de palhaço, mas corro o risco de ser devorado por um bicho à espreita. Ver agentes-fantasmas por todo canto ao lado de outros módulos cerebrais como atribuir causalidade a tudo e projetar-se no lugar de outros é o que basta para transformar o gênero humano numa espécie amedrontada, supersticiosa e pronta a crer em todo tipo de ser imaginário --terreno fértil para as religiões.
Em qualquer hipótese, os memes, sejam eles religiosos, tecnológicos ou de qualquer outro tipo, só sobrevivem porque algum ser biológico, conscientemente ou não, se dispõe a zelar por eles e propagá-los. É aí que entra o papa e o catolicismo no Brasil. Bento 16 não é exatamente um biólogo nem um crítico cultural, mas é sem dúvida alguma um sujeito culto e informado. Tem plena consciência de seu papel como guardião do memeplexo do catolicismo (ele talvez não goste da designação meme) e, mais do que ninguém, conhece o problema da perda não apenas de fiéis como também de vocações sacerdotais. Ainda assim, insiste em colocar a igreja numa rota conservadora que poderá --ele mesmo o admite-- resultar numa diminuição ainda maior do número de adeptos.
O paradoxo se explica. Agregar um bom rebanho não é a única medida do sucesso de um meme. É bem verdade que perder todos os fiéis teria como conseqüência inapelável a morte da religião, a exemplo de tantas outras que desapareceram sem deixar traços ou legando à posteridade apenas registros fósseis. Esse, entretanto, está longe de ser o caso da Igreja Católica, ainda uma das mais praticadas do mundo. Para o papa, aceitar os termos impostos pela concorrência em seu "tudo por uma alma" implicaria abrir mão de características que ele considera fundamentais para o catolicismo. Afrouxar-lhe a rígida moral, por exemplo, de modo a cativar mais "clientes", significaria transfigurar a tal ponto a Igreja Católica que ela deixaria de ser ela mesma --uma outra modalidade de morte do meme. O papa fez sua escolha pelo "pauci, sed boni" (poucos, mas bons). Prefere uma igreja com menos fiéis, mas mais fiéis à doutrina.
A pesquisa Datafolha trouxe indícios que confirmam as suspeitas papais. Dentre os entrevistados, 61% acham que os católicos não praticam a sua religião. Considerados apenas os que declararam pertencer a essa credo, a taxa chega a 58%. Ou seja, os católicos não estão sendo assim tão católicos em seu catolicismo --é curioso aqui observar que, na acepção que utilizei do termo "católico", a palavra significa "rígido", "exato", mais ou menos o exato oposto da situação agora diagnosticada. É mais um exemplo de como os memes, do qual a linguagem é um exemplo, "evoluem".
Apenas o futuro ao qual não assistiremos dirá se o zelo de Bento 16 pela pureza da igreja a fortalecerá ou agravará seu enfraquecimento. Para mim, que me incluo no exclusivíssimo grupo de 1% de ateus brasileiros --sim, o ateísmo também é, pela lógica memética, um meme--, o destino do catolicismo só importa como experiência sociológica. O que diferencia o memeplexo do ateísmo de seu congênere católico é que o primeiro admite sem problemas ser o resultado de sistemas de idéias em constante mutação, enquanto o segundo pretende ser a tradução de uma verdade revelada que permanece a mesma desde o início dos tempos. Se a verdade é, desde sempre, una e imutável, como puderam multiplicar-se tantas religiões que seriam por definição erradas? O Deus católico essencialmente bom não tem pena das incontáveis gerações que antecederam o Cristo e estão condenadas à danação eterna por um mero acidente temporal? E todos aqueles que vivem nas regiões não-católicas do planeta? Também arderão nas chamas eternas apenas porque nasceram no país errado?
O papa Ratzinger elegeu o relativismo como um de seus maiores inimigos. É verdade que o relativismo absoluto nos leva a uma espécie de imobilismo crônico. Se tudo se equivale, não precisamos nos dar ao trabalho de decidir nada. Mas daí não se segue que todo relativismo seja maléfico ou inútil. Pelo contrário, há situações em que ele é absolutamente necessário. É o caso das religiões. Basta um leve olhar antropológico para perceber que diferentes grupamentos humanos deram soluções diferentes para suas inclinações religiosas, desenvolvendo um sem-número de sistemas mitológicos e rituais. Achar que apenas um deles encerra a Verdade e todos os demais estão errados equivaleria a afirmar que um Deus ensandecido está no comando do mundo.
Seu Frias
Por mais de dez anos, tive o privilégio de conviver diariamente com o seu Frias. Não vou falar aqui de suas contribuições para a modernização da imprensa brasileira e de seu talento empresarial, que transformou o Grupo Folha no que é hoje. Outros já o fizeram com muito mais propriedade. E, de qualquer forma, esses são legados. Eles permanecem. É o velho seu Frias contador de saborosas histórias, com suas perguntas sempre certeiras --que desmontavam as mais brilhantes construções acadêmicas dos editorialistas--, suas teimosias e, principalmente, seus constantes gestos de carinho e amizade que faz uma falta tremenda.
Hélio Schwartsman, 41, é editorialista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.