Tanto é verdade que ao entrar em antros localizados no morro dos ventos uivantes, mais conhecido como Itatinga’s Garden, a zona principal, embora não a única, da cidade das andorinhas, costumo me deparar com situações como a descrita pelo amigo Mendoncinha ao relatar a história de seu confrade Aquiles. Com toda a certeza foi mais de uma boa dúzia de vezes que vi senhores de reputação ilibada se derreterem de amor ao pés de uma putinha barata, daquelas de sapatinhos vermelhos e com a boca lambuzada de batom Boka Loka. Alguns chegam a jurar paixão eterna, fidelidade putanhística, fazem versos, o diabo.
Isso me lembra o amigo Dr. José Carlos, mais conhecido entre o grupo de colegas como Dr. Zeca. Também ele era desses senhores de reputação ilibada. E entendam ilibada em relação à maneira de tratar as putas, que nada mais eram do que putas e, como tal, tinham a obrigação de suportar todos os tipos de humilhações.
Dr. Zeca seguia essa filosofia. Ginecologista famoso na cidade, era daqueles que jamais esboçava a mínima empolgação ao falar de garotas de programa. Para se ter idéia, até ao fazer referências à esposa ele o fazia com uma boa pitada de sarcasmo, contando, entre risadas, de como ela tinha dificuldade de trepar por conta da buceta pequena e do útero baixo. De minha parte nunca soube o que era útero baixo, porém, como o Dr. Zeca era profissional no assunto, me calava derrotado. E o médico continuava, dizendo que justamente nessas horas ele costumava colocar a mulher de quatro e socar com força para ouvir seus gritos. E ai da coitada de reclamasse: tomaria uns bons tapas na certa. Houve, inclusive, um vizinho de andar do doutor, por acaso, cliente de meu escritório de contabilidade, que foi, em ocasiões diversas, testemunha auditiva das pancadas que Dr. Zeca dava na cônjuge quando não se dava por satisfeito numa trepada.
Sendo assim, nós, da turma do chopp diário e da putaria, tínhamos de ter o máximo de cuidado com o homem. O menor deslize, isto é, o menor comentário elogioso à beleza e às habilidades de uma prima na cama era repreendido pelo médico, que censurava irônico:
- Porra, será que vocês não percebem como são idiotas?! Uns otários, isso sim! Se eu não confio nem mesmo em minha mulher, que é direita, quanto mais em uma nêga que encara uns vinte pintos por dia. O que ela faz com você faz com qualquer um que pague mais. E não vem com essa merda que fez ela gozar que isso não cola. Sou médico e sei do que tô falando.
Procurávamos mudar de assunto, esperando os lanches boca-de-anjo chegarem. Era muito constrangedor falar de putaria perto de uma pessoa com nervos de aço e coração de pedra. Nos calávamos, impressionados.
Ocorre, entretanto que naquele dia, uma quarta-feira, eu não estava com a mínima vontade de voltar para casa. Liguei para o Cervantes, meu sócio, para pedir que ele abrir o escritório e segurasse as pontas sem mim na parte da manhã. Sem condições de dirigir, peguei um táxi e resolvi rumar para o Itatinga, pois queria gastar pouco.Uns quinze minutos depois fui acordado aos cutucões pelo motorista. Havíamos chegado. Indiquei o local em que queria ficar e lá fomos.
Entro e vou direto ao balcão, com a boca seca e desejando uma cervejinha gelada para rebater os chopps e as duas doses de JB tomadas havia pouco. Com a vista embaçada e achando absurdo pagar dez pilas por uma mera garrafa de cerveja, regateando com o gerente e fechando em sete, diviso, numa espécie de palco localizado na extremidade oposta do salão da entrada do lugar, contudo, de frente com o bar, uma figura de terno branco e chapéu panamá enterrado na cabeça colocando moedas em uma juke-box. Ao seu lado, uma putinha ruiva, de cabelos curtos repicados, trajando um minúsculo vestido amarelo que mostrava sua bunda redondinha e delicada. O gerente me traz a cerveja e dá um risinho. Nem cheguei a ouvir seu comentário. Uma música em volume altíssimo invadiu todo o recinto. Na mesma hora o homem de branco, sempre de costas para mim, se atracou com a priminha e tirou para dançar ao som dos versos:
And she'll tease you, she'll unease you
All the better just to please you
She's precocious, and she knows just
What it takes to make a pro blush
All the boys think she's a spy, she's got Bette Davis eyes...
Era a versão cantada por Gwineth Paltrow no filme Duets. O cara de branco e a putinha iam deslizando pelo palco sem, aparentemente, ligarem para o mundo ao redor. Chegava a ser quase comovente uma cena de tamanho romantismo. As músicas iam se alternando. Agora a voz de Paul Young saía rouca das caixas de som.
Every time you go away
You take a piece of me with you
Devo ter ficado uma meia hora ali, tomando cerveja e vendo o cara do bar quase cagar de rir do “casal” dançando no palco. Meio bêbado e no escuro eu não tinha a menor noção da cara do homem de terno branco. O chapéu enterrado na cabeça disfarçava ainda mais sua identidade. No entanto, pelas risadas do gerente e pelos olhares e risinhos das outras pervas que entravam e saiam dos quartos, percebi que se tratava de uma figura conhecida na casa.
Para encurtar a história das músicas, a juke-box ainda tocou Love is love, do Culture Club...
Love is Love is nothing without you
Love is Love is everything you do
Open up your eyes and you will see
Love is Love is everything to me
E uma das muitas baladas açucaradas do Roupa Nova:
Eu te amo e vou gritar para todo mundo ouvir
Ter você é meu desejo de viver...
A essas alturas, comecei a achar aquilo tudo muito exagerado. Quem ficaria quase uma hora dançando com uma puta, de rosto colado, e com aquelas musiquinhas mela-cueca?
Ia me distraindo com esses pensamentos quando chamo uma mulatinha bunduda para fechar minha noite. Ela se aproxima, combinamos o programa e entramos no quarto. Não fico lá por mais do que meia hora e saio, após uma foda, no máximo, mediana, para ver o chão todo forrado de pétalas de rosas vermelhas. Pergunto para ela e ouço que era coisa do homem de terno branco. Toda quarta-feira à noite ele chegava do mesmo jeito, com as mesmas roupas, tirava a mesma garota para dançar (Juliana, o nome da “dançarina”) ao som das mesmas músicas, cobria o corredor com as mesmas pétalas de rosas vermelhas e ia comer a menina na mesma suíte dos fundos. “Isso é que é babar ovo” – pensei comigo. Ato contínuo, a porta da suíte dos fundos se abre. O homem, apenas com o chapéu panamá na cabeça, é expulso do quarto aos tapas e aos gritos pela garota ruiva:
- Não aparece só com flor de novo, seu filho da puta! Cadê o relógio de ouro que você prometeu? E a mesada deste mês? Preciso pagar a creche da minha filha!
Derrotado, o cara se senta, nu, no chão, em cima das pétalas de rosa, aos prantos. A puta de cabelos vermelhos atira o terno branco na cara dele e bate a porta. Solidário, resolvo tentar ajudar, quando o sujeito tomba, desmaiado, fazendo cair o chapéu.
Com que surpresa não vi naquele rosto o rosto do Dr. Zeca. Não sabia se ria ou se auxiliava meu companheiro de mesa. Optando pela segunda alternativa, estranhei a ausência de qualquer cheiro mais forte de álcool. De fato, mesmo na nossa mesa de bar, o médico não bebia mais do que dois chopps e, em seguida, partia para o guaraná. A mulata que me atendera contou que o cara não bebia uma gota, que devia era ser louco mesmo, que não daria dois minutos e ele acordaria.
Acordou. Me olhou curioso e disparou a falar:
- Machado? O que você faz aqui? Aliás, o que eu estou fazendo aqui? Porra, que merda é essa? Chapéu panamá? Terno branco? Que é isso? Como vim parar aqui? Você que me trouxe? Mas logo neste lixo de lugar?
Relatei todo os episódios e nosso doutor começou a rir. Eu, com certeza, segundo ele, estava confundindo-o com outra pessoa ou estava tirando um sarro da cara dele, das duas uma. Fiquei sem entender nada. Dr. Zeca, da maneira mais natural do mundo, vestiu “aquela merda que tava mesmo ali” – o terno branco – e foi saindo aos assobios. A mulata olhou para mim e girou o indicador próximo à cabeça, num claro atestado da loucura do meu amigo.
Fui alcançá-lo já na rua, fazendo sinal para um táxi que passava por ali. Entrei no mesmo carro e repeti a história.
- Você tá maluco, caralho?! Acha que logo eu passaria por um papel desses? Vou te indicar um psiquiatra amigo meu.
Os dias seguintes foram na mesma rotina: todos os putanheiros bebendo chopp e o Dr. Zeca doutrinando acerca da maneira de tratar as mulheres em geral e as putas em particular. Eu não conseguia acreditar que alguém pudesse ser tão bom ator e já estava a ponto de aceitar a teoria de loucura, postulada pela puta mulata. Inclusive, cheguei a voltar à boate para conferir se o “homem de terno branco” continuaria fazendo das suas. Busca inútil. Nunca mais tal figura foi vista por lá. Me convenci de que Dr. Zeca tinha algum distúrbio psíquico e que precisava de ajuda.
Até o dia em que saí com a Paloma, uma morena bonita, que dava o cu e deixava gozar na boca e ouvi dela a história de um cara que ia pro motel, pegava suíte duplex e antes de trepar, vestia um terno branco, enterrava um chapéu na cabeça, colocava umas músicas velhas e melosas, tipo flash back, e dançava coladinho com ela. Terminada a dança, ele tirava um pacote do bolso do paletó e cobria o chão com pétalas de rosas vermelhas. A fama do cara já estava se espalhando entre as putas. Um verdadeiro cavalheiro, romântico, lindinho, tudo de bom segundo elas. Ou um verdadeiro BOP, segundo eu.
Velho Rabugento