Ele acordou com um fogo lhe consumindo as vestes. Levantou, despiu-se com
cuidado, deixando a roupa macia e quente de inúmeros anseios noturnos
acariciar seu corpo. À medida que ia levantando a blusa, um vazio ia subindo
pela espinha até tocar a nuca. Tremeu, arrepiando-se por inteiro.
Entrou embaixo do chuveiro, encostou a testa no azulejo frio e deixou que a
água morna deslizasse pelas costas, com suas unhas curtas de amada dócil
afagando-lhe o espírito. Secou as orelhas, o espaço morto entre os dedos do
pé, sacudiu os cabelos tal como faria um cão, vestiu-se ainda molhado e
saiu.
Na rua sentiu-se tonto, como se existisse ar demais pra respirar. Abriu os
braços, levando-os de um lado a outro, pegando impulso para em seguida
rodopiar feito pião, girando sem lógica até cair, torto. Quão amarga era a
companhia da solidão. Cobria-lhe de mimos para na hora certa cobrar o que
havia de mais precioso nos seres humanos: a esperança. Agora só restava, só.
Decerto a solidão saberia reconhecer sua dedicação...
Levantou ainda meio perdido, sem reconhecer o lugar onde havia deitado.
Ouvia um misto de barulho e silêncio, risadas e gemidos, o chão girava
lentamente, e parecia que girando tinha feito o tempo ruir-se em pedacinhos,
construindo uma nova estrutura. Uma nova chance? Bateu um vento na pele, um
sopro de não se sabe onde, excitou-lhe os nervos, o membro, deixando-o
pronto para apreciar pela primeira vez a comida que lhe era oferecida.
Sentia um misto de vergonha e curiosidade ante a loucura jamais prenunciada,
ante a majestosa figura do membro ereto, empunhado como espada, a única arma
que tinha a oferecer aos inimigos. Já era hora de assumir a essência
masculina renegada, deixar de usar os artefatos que ganhara da vida somente
como escudo, sem coragem para encarar de frente os anseios do corpo. Parar
de esconder-se atrás de órgãos mancos, deixando apagar a chama de homem que
lhe fazia não especial, mas o que tinha que ser por direito de nascença.
Caminhou renovado. Sentia-se gigante, esquecida a sua pequenez costumeira.
Entrou num beco de onde saíam as risadas e gemidos, e foi com frescor que se
pôs a olhar as maravilhas dos submundos da sua vida. A catarata da
racionalidade que cegara seus olhos até então, era rapidamente substituída
por novas lentes. E ele pôde ver com clareza a fúria de terremotos em coxas
frágeis, maremotos em seios rígidos, vendavais em pêlos que salivava em ter
na sua boca entranhados nos seus dentes. Seu corpo ardia, vulcão passivo,
sua lava remoendo entranhas, o fogo domando seu próprio fogo para poder sair
sem nada devastar.
Seu faro seguia procurando algo que não sabia exatamente o que era. Aquelas
mulheres, seminuas, andando de um lado para o outro, feito urubus procurando
carniça, não mereciam a glória ingrata de sua luta. Procurava alguém por
quem quisesse perder suas defesas e entregar-se como prisioneiro de guerra.
Alguém que o fizesse guerreiro, mesmo desarmado.
Perdia-se nestes devaneios quando viu uma placa que dizia "Decifro-te e te
devoro. Em troca exijo prazer". Lia e relia os dizeres com uma expressão de
não ter entendido nada. Na verdade procurava as entrelinhas, que decerto
existiam, em um oferecimento atroz generoso.
_ É de graça, pode acreditar.
A voz era distante e presente, rouca nas terminações, levemente acentuada,
sibilosa, como se acompanhada de uma lambida discreta nos lábios ressacados
pelo ato de falar. Ela estava sentada, nua, num caixote de madeira, as
pernas cruzadas displicentemente, dando um ar de recato ao corpo francamente
oferecido.
_ E o que você ganha com isso? - ele perguntou depressa, tentando dissipar
um certo ar de fascinação que dele tomava conta.
_ Prazer, é o que diz o anúncio.
_ E quem pode garantir ser capaz de oferecer prazer de verdade?
_ Você deveria saber responder essa pergunta. Todo homem se julga capaz de
dar prazer a uma mulher...
_ E em quais você acredita?
_ Em nenhum.
_ Então como você escolhe?
_ Não sou eu que escolho, eles é que me escolhem. Só me procuram os que
precisam de entendimento. Estes costumam me dar prazer.
Ele não sabia se estava se sentindo num filme de quinta categoria, onde o
ator canastrão usava barbicha mal feita, calças apertadas e em uma
determinada hora deveria olhar pra câmera e falar "Oh, baby", pronto pra
agarrar a mocinha, ou se num déja-vu clichê, onde todas as frases ditas eram
as que ele tinha predeterminado no roteiro. O certo é que aquela garota
mexia com ele. Nada de sinos tocando e outras papagaiadas, mas sentia que a
franqueza e pretensa liberalidade dela o atraíam, como uma criança quando
descobre um doce.
_ Convenhamos que não é difícil querer te escolher quando se está na sua
frente e você está nua. Bastaria isso, mas você ainda diz coisas coerentes,
sensatas, inteligentes e intrigantes...
_ Os homens desconhecem que as putas de verdade são as detentoras de livre
arbítrio; Desconhecem mais ainda que o livre arbítrio é uma das mais cruéis
punições que se pode carregar em vida, e que decidir que caminho tomar é
algo que requer muita racionalidade e pensamento.
_ Você vai me deixar louco se continuar me dizendo o que quero ouvir. Dê
pelo menos uns segundos entre uma resposta e outra pra eu achar que você
está em dúvida e que não tem todas essas respostas decoradas.
_ Essa não seria eu, e se fosse diferente você não estaria há tanto tempo
me ouvindo...
_ Quero te comer.
_ Você se acha capaz de me dar prazer?
_ Há duas horas atrás eu responderia que sim, mas agora eu não tenho
certeza. Minha impressão é que tentar te agradar é um caminho sem volta. E
mesmo que volte, jamais serei eu mesmo novamente.
_ Você tem algo a perder?
_ Só as lembranças do que já perdi. Elas é que me fazem ser o que sou hoje.
_ Então aproveite pra começar a perder agora o que será amanhã.
Há muito lhe faltavam os argumentos para discutir, ou a vontade de se
entregar dominava tudo. Não resistiu aos beijos dela, aos carinhos dela, ao
corpo dela, quente, visceral, maternal, que trazia com ele todo o balanço
morno de colo, todo aconchego e segurança que tinham lhe arrancado fora com
o corte abrupto do cordão umbilical. E assim passou a noite toda beijando,
lambendo, chupando, sorvendo aquele calor que parecia inesgotável. Despejou
nela, junto com o sêmen, todo seu cansaço, desilusão, raiva, descrença.
Acordou renovado com o desabafo. Fumou um cigarro, beijou-lhe a testa e
partiu.
Sentia que o mundo estava mais leve. Os muitos dias que se seguiram estavam
cobertos pela aura indecifrável da ausência, pela fissura discreta da
saudade, mas ele sequer deu conta disso. Seguia a vida normal, embora um
tanto mais agradável. Ele e a vida... Sabia que para manter a felicidade que
havia sentido era necessário expor os temores e anseios acumulados em tantos
anos. Para receber era preciso dar, e ele não tinha nada em si que valesse a
pena entregar a outra pessoa. Preferia deixá-la livre, sem o peso de um
sentimento amputatório. Não teve coragem de pagar pra ver.
Mesmo com toda essa precaução, não conseguiu esquecê-la. Numa dessas noites
em que o ar e o mundo parecem mais pesados, e o corpo parece não
aquietar-se, resolveu voltar ao ponto onde o mundo tinha se reorganizado
para ele. As risadas e os gemidos dessa gente de vida fácil, e boa, nunca
lhe soaram tão agradáveis. Sorriu como se desse uma gargalhada, e
jocosamente seu cérebro tecia as mais improváveis desculpas para estar ali,
como se o pecado pudesse ser justificado pra quem quer que seja. Procurou a
placa, o caixote, o cigarro, mas nenhum deles estava ali. A tempestade
desabou assim sem aviso, sem nenhuma gota a pingar primeiro bem no meio da
testa. Seu desolamento fez até o céu chorar, mas ele mesmo não conseguiu.
_ Tá me procurando?
A chuva embaçava a noite, mas ele a viu muito bem. O corpo, agora vestido,
nada tinha de oferecimento, mas a boca levemente entreaberta deixava
transparecer um quê de desejo, ou de algo que ele jamais saberia.
_ Eu vim dizer que te amo.
Não era bem isso que pensava em dizer, mas a frase saiu sem que ele
conseguisse ter o menor controle. Ela não esboçou nenhuma reação. Deu um
sorriso meio de lado sem nenhum sinal de constrangimento nem apreço pelo que
acabara de ouvir. Deve ter ouvido isso várias vezes, ele pensou, precisaria
de muito mais pra convencê-la. Ele também precisava de mais do que isso para
se convencer da sua própria sinceridade.
_ Eu soube que poderia te amar da primeira vez que te vi. Você não tinha
pena nos seus olhos, na verdade você não tinha nada. Nada a oferecer então
nada a cobrar, era um daqueles que nunca voltam. Pensei em você todos os
dias. Com o tempo fiz você representar pra mim um papel que eu construí pra
você, e eu comecei a querer que você voltasse pra me dar as deixas que eu
precisava. Mas o tempo foi passando e a verdade em mim foi construída com
pequenas mentiras que eu arranquei de você em uma só noite. Um sentimento
verdadeiro em bases falsas não tem como durar.
_ Eu disse que vim dizer que te amo.
_ Agora é tarde. Você se esqueceu do princípio da temporalidade. Tudo tem
seu tempo, e você deixou passar o meu.
_ O tempo é subjetivo, é hoje, é quando. Podemos refazê-lo.
_ Não discordo, mas acontece que não confio mais em você. Você pode até
dizer que a confiança pode ser refeita, não duvido, mas para isso você teria
que me abastecer com duas vezes mais verdades, pra que a construção feita de
agora em diante possa suplantar tudo o que foi desmoronado anteriormente.
Não acho que você seja capaz disso, mas se for, vai saber como me achar.
Ela se virou e foi embora, levando com ela o corpo, a placa, o cigarro, e
um pedaço de esperança que ele jamais teria de volta. Ele sabia que era a
última vez que se viam...
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