WESLEYZINHO NO CAMPO DE CENTEIO
Quero que o senhor saiba que só concordei em escrever esta parada aqui para sossegar a ansiedade dos meus pais, especialmente a de Dona Joana, já que o senhor me recomendou que fizesse isso como terapia para as horas de ócio nesse lugar de forma muito insistente e o fez bem na frente da minha velhinha. Ultimamente, nos dias de visita, a primeira coisa que faz ao me ver é perguntar se eu já escrevi alguma coisa. Para tranqüilizá-la e tirar o senhor do meu pé, disse que iria nesta tarde escrever sobre os eventos que culminaram na ... “crise nervosa” que eu tive, antes de ser internado aqui.
Não vou ficar falando o meu nome e me apresentando ou coisa parecida, nem ficar falando da minha infância ou do lugar de onde vim, até porque o senhor já está careca de saber a porra do meu nome e já deve ter arrancado um monte de merda a meu respeito dos meus pais e do meu irmão, o inseto do Cidão. Esse aí entrega qualquer coisa, o maluco tem a língua mais solta que ... bom deixa pra lá, doutor.
Trabalhava numa firma cujo gerente que havia me contratado já tava nas bica de se aposentar. Era o Seu Vandercleysson; logo de cara nos demos muito bem, e, se fosse o homem mais novo, provavelmente estaria trampando lá até hoje. Seu Vander era uma figuraça, putanheiro de almoço, acho que o senhor sabe do que estou falando. Quando lhe faltava companhia, seu Vander me levava junto com ele, e sempre nas paradas mais pesadas, mesmo. Acho que eu teria que trabalhar um mês inteirinho para poder pagar aquelas putas que comia de graça, às custas do meu chefe. Sério mesmo. Além do mais, o bicho era corintiano fanático como eu e muitas vezes a gente deixava de falar das coisas que eram mais importantes pra ficar falando de futebol... Bons tempos, aqueles, ganhava mal pra cacete, mal conseguia pagar a facú, quinto semestre ainda, mas era bacana .
Infelizmente, seu Vander se aposentou. O cara que assumiu a gerência era um completo, mas um perfeito projeto de um filho de uma puta, e, desde o primeiro dia o cara tocou um puteiro com a minha vida, pra ver se eu abria o bico e pedia pra sair. Mas eu não podia nem sonhar em fazer isso. Segurava a minha peteca caladinho, mesmo quando o bichão já vinha acelerando por qualquer ninharia, só pra me aloprar mesmo.
Naquele dia, desde que acordei, nada dera certo. Perdi o metrô, me atrasei de novo para chegar no trampo (ultimamente o metrô estava sempre lotado que só a porra, e nem sempre eu conseguia embarcar logo de cara) e dessa vez o seu Gumercindo não quis nem conversa; já deixou o recado que estava demitido com a secretária, a Dona Valquíria, uma senhora desavergonhada que se fazia de séria, mas que já havia apalpado o meu pau várias vezes por cima da calça, sempre com uma cara de quem não estava fazendo nada demais e murmurava: “ Bom menino, o Wesleyzinho”. Pior é que era uma tiazinha já, mas ainda dava um caldo. Outro dia, pegamos o elevador juntos e logo pensei que iria rolar uma putariazinha quando estivéssemos a sós; a porta se abriu e o mesmo estava vazio. Entramos e eu já estava quase tirando o pau pra fora quando a portinhola se fechou, mas ela ficou bem séria e nem olhou na minha cara. Saiu uns dois andares acima e vazou dizendo “Até já, Wesleyzinho”. Vaca!
Eram ainda uma dez da manhã, e eu tinha uma boa parte do meu dia livre, antes de ir para a facu ver o resultado das provas finais, já sabendo que a casa tinha caído, mas ainda com alguma esperança de ter poucas matérias para DP no próximo semestre. Como iria pagar agora aquela merda já era um novo problema que se avolumava na minha mente. E eu já estava meio cansado de tudo, doutor, não me pergunte o porquê, pois nem eu mesmo sei ao certo. Sem sacanagem, estava num ponto que não agüentava mais ver nem futebol na televisão, coisa que adorava fazer. Minha vida estava chata pra caralho, nada me dava prazer, os dias demoravam um século pra terminar, e, na hora de dormir, sempre exausto, ainda demorava uma cara e meia pra conseguir pegar no sono e acordava no dia seguinte como se tivesse passado a noite em claro. Tava foda. Bem , estava então com o bilhete azul na mão e com uma merreca no bolso, voltando de metrô quando dei o azar de entrar, por acaso, no mesmo vagão que a Dona Celestina, uma vizinha nossa ,amiga da minha mãe; o filho dela, um tal de Dimitre, estudou comigo no colegial,mas agora está completamente perdido na vida, andando em más companhias e dando o cambau nos velhos com a facu, com a desculpinha esfarrapada de estar se preparando para passar na USP. Sempre foi um sacolão, o Dimitre; era aquele tipo de pentelho que dava com a toalha molhada enrolada na bunda dos outros no vestiário, era o mala que colocava tachinha na cadeira dos outros , esse tipo de brincadeira de moleque de dez anos que ele ainda fazia com quinze, dezesseis anos. Só com o migué do cursinho já foi uns uns dois ou três anos. Pega a grana do cursinho, que os pais dão na mão dele e fica de boa , vagabundeando por aí enquanto os pais se lascam para pagar; não sei bem quanto custa mas sei que, se perigar, é até mais caro que a faculdade. Pois bem, não tive como evitar a velhinha, que ficou me perguntando sobre o trampo e tudo mais e eu tive que mentir, para explicar o que eu fazia no metrô numa hora daquelas (inventei que estava de serviço externo); como a desgraçada iria descer só na mesma estação que eu, ou seja, uma das últimas, eu tive que mudar o assunto, tirar o foco de cima de mim, e falar sobre o Dimitre, sobre como o filho dela sempre foi inteligente e esforçado, e como todos os outros sempre o seguiam e como ele era um líder e tudo mais. A velhinha ficou toda feliz, como ficam todos os pais quando escutam este tipo de coisa dos outros sobre os seus filhos, com os olhinhos brilhantes, orgulhosa pra cacilda: imagine se eu revelasse pra ela que espécie de inseto, de verme que era o filho que a pobre tinha criado com tanto sacrifício; que o sacolão do filho dela era um vagabundo , um vadio e que, sempre que trombava comigo tentava me arrastar para algum inferninho ou me oferecer , por preços módicos, todo o tipo de bagulho que se poderia imaginar. Num primeiro momento eu até me diverti com a pobrezinha, mas, depois, fiquei deprimido pra cacete, pois percebi que eu mesmo também não estava me saindo muito bem na vida e pouco ou nada de bom alguém poderia dizer sobre mim para a minha própria velhinha. Quando nos despedimos ela foi para outro lado toda contente e me desejou tudo de bom e muita sorte: eu fiz o mesmo, mas com o coração pesado. Se você parar para pensar, desejar sorte na vida para outra pessoa é algo que dá em que pensar. Não é?
Dei uma bela de uma enrolada, já que as notas só seriam fixadas mais tarde. O bom e velho perdido,estava com aquele dinheirinho da rescisão no bolso, e aproveitei para comer alguma coisa. Comi qualquer merda lá no Mac; eu sou meio gorducho e tenho uma baita tendência para engordar ainda mais, por isso procuro sempre dar uma maneirada na hora do rango. Comi um lanche da promoção, passei no cinema, e peguei uma tela ainda: estava até divertido aquele dia, agora que estou colocando no papel essas paradas aí. Assisti um filme de merda, o cara sozinho conseguiu enfrentar uma organização criminosa interinha para vingar a morte do pai dele e ainda tinha que fazer isso protegendo uma patcha gostosa que o acompanhava pra cima e pra baixo. O filho da puta só foi comer aquela vadia no final do filme e o puto do diretor nem mostrou direito a foda, os dois começaram a se beijar e tals e aí a câmera cortou o bagulho. Verme maldito, mostrar violência, nego levando tiro na cara à queima roupa, sangue pra todo lado, pode: na hora da gente ver os peitinhos e a bunda da gostosona, o inseto resolve bancar o puritano... Bem coisa de americano, mesmo. Detesto cinema, a gente só perde tempo vendo um monte de idiotices por duas horas e meia no escuro e ainda sai mais burro e nó cego depois disso. Sério mesmo.
O foda é que, saindo do cinema, olhei para o relógio e percebi que já era hora de ver o estrago que seis meses de vagabundagem e irreponsabilidade tinham causado. Quando cheguei, nem bem acabei de ver o nabo que tinha levado (só não levei bomba em duas matérias), ainda dei de cara com o Dr. Arruda, que estava na área observando a movimentação e me arrastou para a sala dele. Não sei bem o porquê, mas o Professor Arruda sempre demonstrou muita simpatia e atenção comigo.Parecia me ter em alta conta. Nos primeiros semestres eu sempre colava nele, tirava as dúvidas e tals, participava das aulas e não faltava, nem fudendo, nem quando chovia pra cacete e todos davam o cambau no coitado, nem quando a aula dele era a última da sexta feira. A galerinha toda vazava e ficava ali nos botecos das redondezas, tomando cachaça e azarando. Eu me dava bem com os caras e nem nesse semestre, em que o bonde desandou legal eu fiz isso. Sempre levei o curso a sério, mas não conseguia mais me concentrar em nada que prestasse. Sério mesmo. Não sei o que me deu. Não agüentava mais estudar, fiz todas as provas sem pegar no livro. Chegamos na sala dele, ele me pediu para sentar e tudo mais, e começou a me fazer uma pá de perguntas, num tom bem severo, mas eu conseguia perceber que o maluco estava , no fundo, muito decepcionado comigo. Ele sabia que eu tinha levado bomba em quase todas as matérias e queria saber o que estava acontecendo, e tudo mais. Como eu fui um pouco evasivo, ele abriu a gaveta e me mostrou o que eu havia escrito em uma avaliação cujas questões eram dissertativas. Três questões. Eu fui um dos primeiros a entregar a prova, e, é claro, como não tinha estudado, fui muito mal. O Dr. Arruda ainda se deu ao trabalho de ler o que eu havia escrito para mim em voz alta, só para me mostrar que espécie de asno eu era, o que me deixou constrangido pra cacete; sentado ali, ouvindo aquele monte de asneiras que eu mesmo havia escrito, com os olhos fixos no chão, nem ousando olhar na cara do homem. Depois disso ainda me deu um baita de um sermão e cobrou mais responsabilidade da minha parte daqui para diante e tudo mais e aí eu falei que não sabia se poderia continuar no curso, já que havia sido despedido naquele dia e dependia do salário para pagar o curso. Depois de ouvir isso ele ficou meio pensativo e ficamos em silêncio por uns segundos até que nos levantamos e nos despedimos; foi um negócio lamentável, deprimente pra cacete.
Já na rua, eu fiquei dando voltas no quarteirão, não sabia bem o que fazer da porra da minha vida; como contar para os meus pais que tinha feito merda, tinha sido mandado embora do trampo, tomado pau no semestre e estava sem meios de continuar com a facu? Ah, doutor, o senhor deveria ter visto o olhar feliz dos dois velhos lendo o meu nome em letrinhas minúsculas no jornal, era o filho deles que tinha entrado num curso muito concorrido (e é mesmo, só eu sei como eu tive que ralar para passar naquela porra), os dois com um orgulho do cacete, chegando ao cúmulo de guardar o jornal para a posteridade. Aquela recordação, que me era tão cara há até bem pouco tempo atrás agora martelava a minha cabeça, com a frase que a acompanhava:
- Como, mas como mesmo você conseguiu foder com tudo, seu filho da puta???!!!!!!!
Andando do jeito que estava, parei num boteco e tomei umas e outras e decidi ir no puteirinho lá perto de casa. Achei que seria uma forma de relaxar um pouco para poder agüentar o show de horror que iria acontecer assim que eu abrisse para os velhos que a minha casa tinha caído no trampo e na facu de uma vez só. E fui mesmo, tava com um trocado no bolso , tinha tempo , o que me impediria agora? Nem mesmo a constatação de que o referido estabelecimento era um pardieiro e que nunca tinha colocado os pés naquela merda. Mas era bom eu ir me acostumando com o tipo de vadia que eu teria de encarar daqui em diante, agora que todo o castelo de areia havia ruído... Não tinha mais chefe pra pagar puta de luxo, negão. Vai comer agora as barangas que o trabalhador braçal sem instrução come, quando parte para a putaria.
Entrei no lugar, um muquifo fedorento de quinta categoria, onde alguns caras enchendo a cara no balcão conversavam animadamente entre si e poucas vadias ciscavam pelo local, todas muito feias. Estava já meio que alcoolizado e sentei um pouco, já com uma latinha de cerveja na mão e uma ratazana na cola, me convidando para subir. Subimos.
No quarto, escuro, fétido, desses que, se você procurar, certamente vai achar uma ou mais baratas pelo chão, com uma cama cujos lençóis estavam aparentemente remexidos, portanto, usados, a piranha já começava a tirar a roupa e, uma vez pelada (a coitada já estava bem passadinha, no quarto deu pra ver melhor que ela já tinha bem mais de trinta anos , cheia de pelancas, com os peitos caídos e um hálito de cigarro podre...) começou a abaixar as minhas calças , para começar a fodelança propriamente dita. É claro que não deixei que ela fizesse isso, até porque era pura perda de tempo, no estado em que eu estava. Descemos, e fui embora dali com uma idéia fixa na cabeça: me atirar em baixo de algum carro e acabar logo com aquela agonia desgraçada; eu é que não diria para os meus pais que apostavam tanto em mim que eu era um caso perdido na porra da vida.
A última coisa que me lembro foi de tomar um tranco forte e cair no chão batendo a cabeça, com os reflexos vermelhos e amarelos da noite rodando sem parar , dos faróis dos carros e dos semáforos num misto de buzinas , luzes vivas e brilhantes num fundo negro , como se fosse um quadro ou coisa parecida: e o som de uma freada forte. E depois mais nada.
Acordei depois, bem depois, no hospital, com minha mãe do meu lado na cama, surpreendentemente serena, esperando que eu acordasse; vi também o Cidão,ao lado dela, com os olhos esbugalhados; e meu que pai conversava com alguém que parecia ser o médico plantonista ou coisa parecida na porta do quarto e naquele momento eu o vi com uma expressão de dor, com a mão esquerda tampando a boca ( nesse momento o médico devia estar falando sobre as circunstâncias em que o “atropelamento” ocorrera.).
O mais estranho e louco de tudo é que eu me lembrava de pouca coisa, naquele momento, não sabia bem o que estava acontecendo, mas sabia que precisaria de muita ajuda por algum tempo, e a presença dos velhos e do meu irmão ali, por perto, cuidando de mim, me proporcionou um bem estar e uma serenidade que há muito não sentia; isso aliado ao sonho mais louco que já tivera, antes de acordar e dar de cara com o rosto sereno e plácido de Dona Joana, como se me dissesse, apenas com o olhar, que não havia motivo algum para tamanho desatino. No sonho que tive, eu estava num enorme campo de centeio, desses de filme que você não vê outra coisa até onde a vista alcança, amarelinho e esvoaçante e tudo mais; estava ali, num baita sossego, sentindo a brisa leve que soprava no rosto e nos cabelos, observando algumas crianças que brincavam, livres, felizes, numa algazarra bonita de se ver, mas que,às vezes, se distanciavam do grupinho e se aproximavam perigosamente de um abismo, sem se dar conta disso. Essas eu as apanhava uma por uma, e as colocava de volta em um lugar seguro, onde continuavam a brincar. Nunca tinha experimentado sensação igual àquela desse sonho, senti ali uma paz interior que não é possível expressar em palavras.
Nem que eu fosse um artista ou coisa parecida.
Sério mesmo.
Fortimbrás