Naquele dia, devido à ressaca da véspera, o fundo do mar estava cheio de conchas. Conchas brancas e cinzentas, de variados tamanhos, quase não deixavam ver a areia que ficava por baixo. Entre elas, pedrinhas escuras que mãos grandes e pesadas apanhavam, apalpavam e atiravam de lado. Mãos que se intrometiam pelo meio das conchinhas traiçoeiras, levantando um punhado de cada vez, mãos que se feriam ao tentar discriminá-las segundo a cor e o tamanho, mãos que frequentemente precisavam abandonar essa febril atividade para espantar os peixes famintos que também queriam se divertir um pouco.
Orlando saiu da água com os olhos ardendo. Desta vez havia mergulhado por um tempo muito maior do que o habitual. As conchas vermelhinhas eram mais difíceis de apanhar. Menores e menos visíveis que as outras, brancas, mais comuns. Mas achava que tinha valido a pena. Levava agora um monte delas, quase não cabiam na bexiga que carregava orgulhoso no caminho de volta para a aldeia.
Pela posição do sol, via-se que passava das 7. "*Por isso barriga de Orlando resmungar.". O feiticeiro da família já havia recomendado lavagem do trato digestivo com óleo de serpentes uma vez por mês, alimentação com mais fibras e menos frituras, e ainda não passar muito tempo sem comer. Não conseguia fazer nada disso. "*Você velho de quase 35 anos, não poder exagerar.", dizia o sábio. Mas não dava. A patroa era contra cozinhar algo que não se movesse, "*Isso não ser para comer, Orlando, não saber nem rastejar. Feiticeiro nada valer.", os preceitos da sua religião eram muito rígidos. "*Kanuka grande besta, nunca aceitar conhecimentos que deuses ensinar Mutep.", respondia o feiticeiro e jogava de volta a panela de argila que o havia atingido na orelha, mas sempre errava, por não enxergar direito, e saía da caverna repetindo os nomes dos doze mil demônios das trevas. O pobre Orlando, que não gostava de brigar, ficava sem ação, perdido no meio dessa discussão técnica. Quando tentava descobrir quem tinha razão, sua cabeça começava a doer. "*Orlando aceitar comer bromeliáceas, mas espinhos incomodar muito quando sair." Renunciaria também facilmente ao perfume da gordura de fígado de diplodoco queimando na fogueira em dias de homenagem aos antepassados, apesar deste ter o poder quase mágico de fazê-lo esquecer por instantes das constantes reclamações de Kanuka, "*Por que Orlando não caçar como os outros? Ter vergonha de estágio caçador-coletor da história da civilização?".
O que não dava para abandonar era o hábito de passar as primeiras horas do dia sem comer. Tinha de levantar-se antes do amanhecer, quando ainda estava escuro, para ir catar conchas, e voltar quando os outros machos já haviam saído para o trabalho. Atividades aquáticas não eram bem vistas na aldeia, e alguém podia tentar impedi-lo se o visse correr para o mar. "*Orlando querer ser peixe como ancestrais? Isso regressividade punida por leis da tribo". Claro, não se tratava disso. Apenas Orlando não se sentia atraído pelos ofícios nobres e tradicionais de caçador de mamutes, apanhador de sementes, guardião do fogo, etc. Alguns muito perigosos, segundo ele, outros, por demais monótonos. "*Outros ter medo de mar. Orlando apenas saber fechar nariz para água não entrar. Orlando ver isso sozinho na cabeça sem ninguém ajudar".
No caminho de volta, demorava-se sempre um pouco para observar as fêmeas absortas nas lides domésticas. Gostava principalmente de olhar para Lucineide, uma viúva novinha que morava na trilha que levava para o vulcão. O marido havia morrido por volta dos 13 anos de idade, esmagado por um menir mal encaixado, durante um tremor de terra, deixando-a com 3 filhos para cuidar. Dizia-se que a família de Lucineide passava fome, mas ela nunca dava idéia para o velhinho que passava babando e cheirando a peixe. Desejava ardentemente os jovens caçadores que voltavam enlameados arrastando as carcaças semi putrefatas dos animais abatidos, mas também não negava atenção aos jovens artistas que pintavam cenas de caça nas paredes de cavernas abandonadas. "*Conchas melhor que desenhos.", via Orlando na sua cabeça, "*Conchas falar quando Orlando por no ouvido, desenhos bobagem que não mexer nem ter cheiro.". Realmente, as conchas alcançavam bom preço no mercado da tribo, pela raridade. Apenas Orlando sabia onde achá-las, mas não contava para ninguém. "*Conseguir muitos canivetes de osso por conchas brancas, por conchas vermelhas pedir mais. Querer ver pintadores vender rabiscos no mercado." e deixou-se levar pela imaginação, "*Todos uivar quando Orlando mostrar conchas vermelhas, Lucineide querer algumas para enfeitar queixo", via na sua cabeça, que começava já a doer um pouco com o esforço, "*Lucineide pedir conchinhas, Orlando rir sacana, dizer conchinhas valer muito, não, Orlando dizer Lucineide ter coisa que Orlando querer, não, não bom", a cabeça doía bastante e ficava difícil ver as coisas, "*Orlando dizer conchinhas presentinho, isso, conchas presentinho para Lucineide, Lucineide olhar espantada para Orlando, ai, ai, ai, por que ver coisas na cabeça doer tanto?". Orlando havia passado da encruzilhada certa, quase caiu no pântano, respirou fundo, refez-se do susto, a dor na cabeça arrefeceu um pouco, viu então a imagem clara na mente "*Orlando dizer Lucineide abrir pernas depois ganhar conchas". Precisou ficar meia hora sentado na sombra de um carvalho sagrado antes de conseguir levantar-se de novo, devido ao enorme esforço despendido na invenção.
O coração latia quando gritou na porta da caverna de Lucineide: "*Toc toc toc!", "*Quem ser?", "*Ser Orlando.", "*Orlando? Que Orlando?", "*Orlando Soluções em Conchas Ltda.", "*Orlando ir embora. Aqui não ter conchas.", "*Orlando saber. Por isso trazer conchas especiais para Lucineide.", "*Lucineide não comer conchas.", "*Orlando saber. Conchas enfeitar Lucineide. Conchas muito valor.", "*Formadores de opinião da tribo não enfeitar com conchas. Lucineide não querer isso.", "*Lua passada Orlando vender 10 conchas brancas vizinha de Lucineide. Estas vermelhas, mais bonitas. Ninguém ter. Artistas gostar. Caçadores amar. Curtidoras de couro invejar."
Os filhos de Lucineide chegaram mais tarde da caçada. O mamute era jovem e lutara bravamente. Se houvessem voltado mais cedo, teriam ouvido o barulho de dois corpos buscando o prazer sobre a áspera pele de mosassauro que forrava a seção mais interior da caverna. Mas não deixaram de notar as delicadas conchas ciosamente encerradas dentro de um crânio de humanóide da tribo inimiga, onde costumavam beber sangue de virgens no solstício de inverno. A mãe esperava-os com um sorriso enigmático que desconheciam.
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