Continuou caminhando, acelerou o passo. Sentia-se zonzo, seus sapatos pisavam sobre uma calçada inconsistente, o concreto nunca antes lhe aparentou ser tão abstrato.
Convencia-se de que não precisava se preocupar, muito tempo se passara desde que executou a tarefa que lhe cabia. O destino é uma força que se cumpre, mesmo que a fragilidade do arrependimento venha depois. Ele sabia...
A primeira vez que viu Rose, naquele sobrado da Rua do Acre, todos os seus sentidos foram tomados por uma paralisia angustiante. O universo congelou quando ela se aproximou e encostou o corpo quase desnudo ao seu. Ela tocou-lhe o rosto e perguntou o porquê dele estar sozinho e com aparência triste num canto do salão. Ele ficou mudo, não conseguiu emitir nem sequer um som; ela sorriu, encarou seus olhos profundamente, deu-lhe um beijo leve nos lábios e se afastou.
Uma mulher havia lido sua alma, uma meretriz da Praça Mauá o havia decifrado, ele sentia um misto de nojo e surpresa. A lembrança de Rose era a obsessão dos seus dias, não podia mais pensar em nada que não rodasse em torno da daquela mulher que lhe surgiu tão intrigante.
Ele continuava andando, tinha certeza que alguém o seguia...
Como poderiam ter descoberto o que fez? Tudo saiu como planejara, tudo perfeito!
Olhava em volta na tentativa de identificar seu perseguidor naquele turbilhão de faces e olhos. Nada! Inútil! Seus passos ficaram mais largos, a respiração mais ofegante e as recordações continuavam a brotar em cascata.
Depois da primeira vez em que a viu naquele Bordel, retornou em muitas outras noites para sentir-se próximo dela. Nunca a tocou, ficava observando seus gestos, tentava ouvir sua voz em meio ao barulho da música ensurdecedora, torturava-se ao vê-la em beijos promíscuos com outros homens. Ela conhecia o seu segredo, ela o invadira.
Não se lembrava mais do momento em que decidiu fazer o que fez, talvez tenha sido na terceira visita àquele Bordel, quando esbarrou novamente com os olhos de Rose o analisando, provocando-o a revelar-se. Rose tinha olhar de abutre, penetrava em suas entranhas e ele passou a sentir uma náusea insuportável diante dela, tinha ojeriza à sua presença, aversão à sua existência. Sim! Foi quando identificou aquele olhar de rapina que decidiu executar sua trama amoral.
Seu coração batia tão forte que podia escutá-lo, sua cabeça estalava em pulsações desordenadas. Por que o estavam seguindo? Como poderiam tê-lo encontrado? Ele pensou em parar e enfrentar quem o seguia, mas apressou o movimento das pernas, correu, queria escapar...
Antes da execução, passou a dissecar detalhadamente a rotina de Rose, conheceu seu horário de entrada e saída naquele Bordel do Centro da Cidade, soube que ela saía sozinha e onde pegava a condução que a levava de volta para casa. Certo dia, seguiu a Van que a transportava e descobriu que ela morava para os lados da Pavuna.
Agora, ele poderia traçar o roteiro do seu intento.
O fôlego começava a lhe faltar, mas as pernas respondiam numa corrida sem rumo no meio daquela selva de rostos anônimos, ele sentia a massa humana se contrair num espasmo voluntário, queriam esmagá-lo, ele estava acuado. Seu perseguidor não iria desistir, ele sabia...
O plano era simples e a técnica que usaria para eliminar a causadora do seu tormento se baseava numa leitura que havia feito há anos num livro sobre medicina de guerra. Soldados usavam duas facas para apunhalar o inimigo na altura dos rins, simultaneamente. A dor seria tão lancinante que a vítima não encontrava força para gritar. Seria assim!...
Quando Rose lançou-se pela Rua do Acre deserta e sombria, ele a chamou, disse que havia atropelado um cachorro, pediu que ela o ajudasse a acomodar o animal no carro, que ele iria socorrê-lo. Ela aproximou-se, agachou para tentar enxergar o cão ferido e ele então fincou, com violência e ao mesmo tempo, os dois punhais nos rins da mulher.
Não houve grito, mas um grunhido abafado e terrível ascendeu do asfalto, o corpo de Rose petrificou-se. Ele a lançou no banco de trás da caminhonete e engrenou o carro pelo percurso que levava até a Pavuna.
Havia muito sangue, mas ele cobrira os bancos com muitos lençóis e toalhas. No meio do caminho, numa rua deserta e escura do subúrbio, enrolou o corpo nos panos e o descarregou no meio-fio. Os olhos de Rose tinham a expressão do vácuo, o abutre estava morto. Ninguém mais conhecia o seu segredo. Tudo era silêncio...
Suas pernas vacilavam... Desde o dia do assassinato passou a vagar pelo Centro, sabia que alguém passara a segui-lo. As batidas do seu coração ensurdeciam sua audição, o cérebro queria explodir, não conseguia mais correr, alcançara seu limite. A multidão o envolvia num círculo fechado, seus perseguidores eram muitos, ele ainda tentou um último pique desesperado, mas tropeçou e se viu arremessado, como num salto, aguardando o impacto vertiginoso com o chão áspero. Ele se debateu e bradou a sua culpa enquanto despencava.
Acordou!
Estava amarrado por correias a uma cama, o ambiente era de penumbra, cortinas de plástico o contornavam, escutou passos em aproximação. Uma mulher vestida de branco surgiu diante dele, havia um nome bordado no jaleco que vestia: “Sanatório Estadual”.
Ela tocou seu rosto e olhou dentro dos seus olhos. Ele estremeceu e chorou antes de adormecer novamente ao pico ácido de uma seringa. Eram os olhos do abutre!...
DANTE