Decepcionado, enrolei a bandeira, coloquei debaixo do braço e deixei o estádio silenciosamente. Engraçado, a Folha tinha garantido que a vitória seria nossa. Bem, não se pode acertar sempre. Falando em acertar, ou melhor, em errar, só depois notei que a bandeira que eu tinha levado não era a do América, e sim a do PPS. O que indica que eu fora (2) com a bandeira do América ao comício da Marina Silva no dia anterior. Não é à toa que o pessoal do partido ficou me olhando atravessado (3).
Decidi voltar para casa a pé. No caminho, encontrei inesperadamente uma pessoa bastante conhecida: eu mesmo, que vinha andando no sentido contrário. Reconheci-me facilmente devido à extraordinária semelhança com meu irmão Dmitri. Ele não levava nenhuma bandeira do PPS debaixo do braço, certamente porque eu só tinha uma em casa.
- Olá, saudei. Como vamos indo?
- Tirando a derrota presente do América e a futura da Marina, vamos bem, obrigado. Para onde vou?
- Pro Maraca. Venho de lá. Quer dizer, se for em linha reta, é claro. Qualquer mínimo desvio pode levá-lo a qualquer outro lugar, contanto que caminhe um intervalo de tempo suficientemente grande, como dizia nosso avô Radamés.
- Maraca? Tô fora. O jogo já acabou, o América perdeu. Que vou fazer lá?
- Pode ir não assistir ao jogo. Em se tratando do América, não assistir traz sempre muitas vantagens.
- Boa idéia. Vá indo que eu levo nossas coisas pra casa.
Satisfeito, entreguei-lhe a bandeira, a carteira e meus tênis novos, como sugeriu, e tomei o rumo do estádio. A Folha ele não quis levar. Felizmente aceitou meus argumentos, pensei, hoje não estou com saco pra discutir. Eu, ou melhor, ele sempre foi muito teimoso. Sempre acha que tem razão, por mais argumentos irrefutáveis que as pessoas melhor informadas lhe apresentem. Se eu pudesse, mudaria para longe da nossa casa.
Mas já falei bastante de mim. Agora preciso me apresentar. Vladimir Stepanovicinsky, vosso criado. Natural de Quixeramobim, Bulgária, berço ancestral dos Stepanovicinskys. Torcedor do América, como o leitor mais arguto já deverá ter percebido. Tenho um irmão que se chama Dmitri e um gato, que não se chama Stanislaw por não possuir o dom da fala, mas que compensa essa e outras deficiências de caráter pelo incomum dom de voar. Em todo caso, chamam-no Stanislaw, como aliás poderiam chamá-lo Zbigniew, Radamés ou Severino, nomes de parentes meus, ele de forma alguma atenderia, não por preguiça ou surdez, mas porque voar consome todas as suas energias, ao ponto de por vezes tornar-se pequeno demais para ser visível, coitado.
Absorto em meus pensamentos, não percebi, ao me aproximar do portentoso Mário Filho, que ele não estava mais lá. Ou melhor, estava lá, mas não lá onde costumava estar, não só ele como todos os demais estádios de futebol do mundo, digo melhor, como todos os demais estádios de qualquer esporte de qualquer dos mundos, a saber, firmemente assente no chão solo pátrio (4), e sim suspenso no ar, flutuando alguns metros acima do chão (5), voando portentosa, plácida e maracanamente, como se fosse um gato.
O Maracanã estava polvilhado de luzes vermelhas piscantes, belo como uma camisa do América. Abaixo dele, vi-o logo, encontrava-se um chorrilho (6) de seres extraterrestres. Que deslizavam lentamente em minha direção, brandindo ameaçadores sabres de luz.
Estava na hora de me tornar um herói, concluí. O mundo agradeceria eternamente minha bravura em encetar contato com esses extraterrestres e depois narrar a aventura. Infelizmente, minhas pernas tremiam demasiadamente e não puderam corroborar minhas primeiras impressões. Resolvi fugir. Para despistar os guardas, corri para onde menos esperavam: direto em cima deles. Minha astúcia, entretanto, não foi suficiente para enganar meus perseguidores. Agarraram-me, arrancaram minhas roupas, menos os tênis novos, que eu já estava levando seguros para casa, é mesmo uma benção a gente conseguir se encontrar consigo mesmo (7), mas o resto os filhos da puta tiraram, depois imobilizaram-me completamente com uma corda laser e me levaram para o interior da nave.
Aproveito para protestar contra o título dessa crônica. Ficou parecendo filme da Sessão da Tarde. Já prevejo a chamada, o locutor fala em off "Ele era um cara muito louco...", aí apareço eu despreocupado falando "Esses cientistas espertalhões enganaram você.", vem o locutor de novo com "... mas um dia ele se meteu em uma tremenda confusão...", apareço eu de novo, agora preocupado, "não tinha uma sonda mais fininha, não?", novamente o locutor "...e agora vai encarar altos perigos enfrentando uma galera da pesada". Peço ao moderador que substitua o título por algo mais neutro, como "hlör u fang axaxas mlö", para evitarmos consequências desagradáveis.
Dentro da nave, fui recebido por uma espécie de sapão com chifres de alce, que se apresentou como "Muvukaniga, o oficial de menor patente a bordo, encarregado dos contatos com as formas de vida inferiores". Muito educado, prontamente estendeu-me a mão. Para ser exato, mão não é um termo suficientemente descritivo. Tratava-se de uma espécie de tromba, intumescida e avermelhada, provida de protuberantes ventosas como as que se encontram nos tentáculos dos polvos, e peluda como bunda de ogro. Evidentemente, não a apertei.
"Felizmente conhecemos a fundo os estranhos hábitos dos terráqueos", observou meu interlocutor, e prontamente passou-me um frasco de álcool em gel. Após lavar minhas mãos com cuidado, cumprimentei-o efusivamente. Não o devia ter feito. Demorei um tempão para desgrudar daquelas malditas ventosas.
Vendo que eu o olhava com interesse, Muvukaniga prosseguiu: "Não se assuste ao ver que não temos boca, terráqueo. Há muitos séculos aprendemos a nos comunicar telepaticamente. Há mais séculos ainda havíamos aprendido a transformar a luz solar em alimento. E há muito, mas muito mais séculos ainda, havíamos aprendido a rir abanando as orelhas. Assim, pudemos eliminar esse orifício do nosso corpo físico, de maneira a nos protegermos melhor de doenças e do mau cheiro das outras espécies.". Na verdade, não havia notado essa peculiaridade dos ETs. Estava pensando em como faria para tomar meu coquetel diário de remédios, pois já tinha passado da hora. Teriam Tamiflu e Cloridato de Clomipramina ( 8 ) a bordo? Para não parecer grosseiro, dissimulei minhas preocupações e puxei papo:
- Sou um grande estudioso das civilizações alienígenas. Sei que vocês vieram do planeta Nibiru. Sei que viajam através de buracos negros. Sei que constroem suas casas com matéria exótica, o que no final leva à ocorrência de enormes bolhas no mercado imobiliário. Sei que todo playboyzinho tem seu carro voador. Sei que todo adolescente pentelho gosta de criar micro buracos negros com seu colisor de hádrons. Sei que falam na língua do pê. Que barulho é esse? Muvuka, que horror, o que está acontecendo com suas orelhas?
"Não é nada, terráqueo. Não se ofenda. Já esperávamos por esse comportamento. Na verdade, nós o estudamos há muito tempo. Você foi escolhido para acasalar-se com a princesa Babalon."
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Notas:
(1) Pretérito mais que perfeito do indicativo usado como pretérito imperfeito do subjuntivo e como futuro do pretérito do indicativo, forma preciosística encontrável em alguns escritores clássicos. (nota do autor)
(2) Pretérito mais que perfeito do indicativo usado como pretérito mais que perfeito do indicativo mesmo, forma nem um pouco preciosística encontrável apenas em alguns escritores barrocos. (nota do tradutor)
(3) A bandeira do América RJ é vermelha, como a do PT. (nota do Zé da Silva)
(4) Trocadilho: a palavra chão possui tanto o significado de "superphícia aonde pode-se pôr o pé e andaire" quanto o de "plano, lizo, sem altos nem baixos, simples, lhano", de acordo com o Diccionáryo de Como Bem Phalaire a Lingoa Portogueza, de Severino Stepanovicinsky. (nota do revisor)
(5) Aqui não houve trocadilho. (nota do tio do administrador)
(6) A literatura especializada não registra o coletivo de ETs. Usamos o que achamos mais adequado. (nota do moderador)
(7) Procurar "auto-ajuda" no Google. (nota do coordenador)
( 8 ) Remédio que não é tarja preta, e sim vermelha, e que o autor é naturalmente assim, mesmo antes de ter tomado. (nota do estagiário)