AMADO, Jorge. Os Pastores da Noite
A linguagem exerce um papel importante na sociedade, pois através dela, o homem se constitui como sujeito, estabelece as relações sociais, retrata o conhecimento de si próprio e do mundo no qual está inserido. Pela linguagem, podemos reconhecer e diferenciar o usuário dos diferentes agrupamentos, estratos sociais, grau de escolaridade, entre outros aspectos: É um parâmetro que permite classificar o indivíduo de acordo com a sua nacionalidade e naturalidade, sua condição econômica ou social, é freqüentemente usado para discriminar e estigmatizar o falante. (LEITE, 2002: 7)
Todas as camadas sociais se utilizam de um veículo comum: a língua que é um traço de interação entre os membros de uma comunidade, é uma forma ideal que impõe a todos os falantes de um mesmo grupo social. (PALHANO, 1958: 11)
A língua das classes subalternas, por ser usada por grupos sociais estigmatizados, por muito tempo, ficou relegada ao esquecimento pelas classes detentoras do poder que usavam a língua como forma de oprimir e de negar aos excluídos a voz que as insere no processo social.
Não podemos falar em classes subalternas, considerando as relações de subalternidade apenas no ponto de vista social e econômico. Devemos, acima de tudo, pensar na linguagem, pois há uma ligação entre ela e os fatores étnico - culturais.
O falar das classes populares, como frases feitas, provérbios, palavras e expressões, vindo da boca do povo e ouvido nas ruas, nos ambientes marginalizados, representa um papel essencial, principalmente quando se refere ao vocabulário de uma língua.
É na literatura que pode ocorrer uma descrição perfeita da variação lingüística, porque a linguagem é, para o autor, um elemento expressivo do retrato social, do ambiente e dos personagens. Como sabemos, há mais de 70 anos, a literatura brasileira nacionalizou suas obras por meio de temas e linguagens nacionais. Acreditamos que este “grito” tenha sido dado por Mário de Andrade, nos prenúncios do Modernismo, uma vez que sua obra aproximava - se da linguagem do povo e trabalhava com temas populares.
Esta temática é aprofundada com a geração de 30, composta pelos nordestinos Rachel de Queirós, Jorge Amado, Graciliano Ramos e José Lins do Rego, destacando - se também, em outra temática, o gaúcho Érico Veríssimo. Era a prosa regionalista. Não mais apenas na descrição geográfica e cultural da prosa romântica, mas uma narrativa de cunho social, retratando as classes marginalizadas, como o cortador de cana, o sertanejo fugindo da seca, os trabalhadores do cacau entre outros.
Se a linguagem é o “cartão - postal” do usuário, tais escritores foram buscar nela conhecimentos que ajudaram para a descrição das variações lingüísticas de seus personagens. Esses conhecimentos propiciaram um retrato sociolingüístico da realidade daquele momento, com o qual compuseram um painel.
A variação lingüística na literatura, a meu ver, fundamentando - me em Brigth (apud. Pretti. 2000:16) ocorre em três dimensões: A primeira - envolve a identidade social do emissor ou do falante. É exemplificada pelo autor com os dialetos sociais em que as diferenças de fala se correlacionam com a estratificação social; a segunda compreende a identidade social do receptor; a terceira - engloba todos os elementos relevantes possíveis no contexto da comunicação.
Vale destacar também outras dimensões, apontadas pelo autor, a saber: a quarta - engloba os processos de investigação sociolingüística na perspectiva sincrônica ou diacrônica, a quinta: aborda os contrastes entre o uso da linguagem pelas pessoas e o que elas acreditam sobre o comportamento lingüístico delas e das outras. A sexta - trata da extensão da diversidade lingüística, a sétima que aplica os estudos sociolingüísticos. (BRUGTH, 1966: 11-15. In. PRETTI: 2000: 12)
Nestas dimensões inter-relacionadas, está nítida a concepção de uma linguagem condicionada pelos seus usuários, inserida num contexto sócio-político - histórico - econômico.
Falar na realidade lingüística das classes subalternas, presentes nas obras literárias, é retratar a vida dos personagens, as relações de trabalho - patrão e empregado - e, com elas, todo o mecanismo da sociedade humana a partir das trocas lingüísticas o que levou Wilbur Marshall Urban a afirmar que: (PRETTI, op. cit. 14)
A vida meramente não tem sentido. Poder - se - ia pensar que somos capazes de apreender ou intuir diretamente a vida, mas seu sentido não pode captar nem expressar - se a não ser numa linguagem, seja ela qual for. Tal expressão ou comunicação é parte do próprio processo vital.[...] Num sentido bem objetivo, os limites da minha linguagem são os limites do mundo.
As classes subalternas foram os proprietários da produção romanesca da década de 30, na qual destacamos a obra de Jorge Amado. Nascido em 1912, em Itabuna - região cacaueira da Bahia - desde sua infância, já conhecia o drama dos plantadores de cacau, dos jagunços e a disputa, de forma sangrenta, pelas terras. Morou no Pelourinho - coração da cidade da Bahia, como costumava falar ao fazer referência à cidade do Salvador. Lá conheceu a vida dos pais e mães - de santo, dos estivadores do porto, dos vendedores de peixe da rampa do Mercado Modelo, das prostitutas, do menor abandonado, dos saveiros, entre outras classes marginalizadas, como nos diz Silva Elia: A vida trágica e sem esperanças de todos os marginalizados, trabalhadores da enxada, crianças abandonadas, constitui o pano de fundo de suas narrativas polêmicas e sectárias. (ELIA, 1974: 195)
Toda essa gente constitui os personagens de Jorge Amado, cuja obra é a poesia do trabalhador, é uma “ida ao povo”, segundo Antonio Cândido (1998: 333-359). Foi ouvindo o dialeto desse povão que Amado descreveu, em suas obras, as classes oprimidas e as injustiças sociais. Vendo as condições de vida dos trabalhadores das fazendas, tomou consciência do social. Mais tarde, em contato com o povo da Bahia, conscientizou - se do problema racial, conforme nos diz o próprio autor. (AMADO, 1988: 17)
A obra amadiana alia o lirismo à crítica social, caracteriza - se pela simplicidade da linguagem e pelo tom coloquial e popular, satirizante e de fácil comunicação com o público com um estilo solto, através de sua riqueza léxico - semântica, impregnada nas frases feitas, nos provérbios e no seu próprio estilo.
Se a linguagem é influenciada pelos fatores sócio - culturais, qual o padrão lingüístico usado por Jorge Amado para retratar o povo em suas obras? Já que a sua obra consiste em uma denúncia social e, considerando a interferência dos fatores sociais na língua, eis a explicação de um padrão lingüístico simples, marcado pelo lirismo e pela postura ideológica, que retrata o falar do povo.
É o que afirma Graciliano Ramos no romance Suor (1934):
Em Suor, há um personagem muito importante do que os outros: é Jorge Amado que morou na Ladeira do Pelourinho, 68, e lá conheceu Maria Cabussu e todos aqueles seres estragados que lhe forneceram material para um excelente romance. (ALTAMAN, 2001: 95-95
Qual a metáfora que Graciliano Ramos estabeleceu ao usar o termo “seres estragados” (grifo meu)? Com certeza, refere - se ao povo simples e excluído do processo social, relegado ao esquecimento e marginalizado pelas forças opressoras, seja através das condições sócio - culturais, seja através do padrão lingüístico. Jorge Amado pretende acabar com o preconceito do povo, tematizando - o em suas obras, dando - lhe voz e vez. É aí que o povo registra os acontecimentos de sua vida.
Tal temática custou a Jorge, por um crítico literário, ao estudar sua obra, a definição de forma preconceituosa e com menosprezo, de um “escritor de putas e vagabundos” (PALAMARTCHUK, op. cit., p. 334). Para Jorge Amado, essa definição é positiva, pois ele se define como um escritor sempre ligado ao povo e à gente simples, como ele nos diz:
Cada vez eu acredito menos nessa gente, cada vez estou mais perto do povo, do povo mais pobre, do povo mais miserável, explorado e oprimido. Cada vez, eu procuro mais anti-herói... os vagabundos, as prostitutas, os bêbados. (AMADO, op. cit., p. 54)
Para compreendermos a realidade lingüística das classes subalternas descritas na obra amadiana, devemos, fundamentando - nos em Paulo Tavares, partir de dois pressupostos: a linguagem informal e crua, empregada pelo romancista. Eram palavras conhecidas de todo o mundo, dessas não usadas abertamente, mas apareciam no entrecho, reproduzindo o léxico das suas personagens e a ousadia para opor - se à rotina, como fizeram Chaucer, Shaskespeare, Rabelais, Gil Vicente, retrataram fielmente os costumes e a linguagem do povo, deram expressão literária ao falar popular em que o povo é a fonte de tudo. (TAVARES, 1982: 189).
Esses dois pontos serão analisados em três obras de Jorge Amado - Capitães da Areia, Gabriela Cravo e Canela, Tieta do Agreste, nas quais são descritos tipos humanos, aspectos sociais e espaços físico - temporais distintos. A partir daí, Jorge Amado criou um universo lingüístico de um povo que, um dia, deu consciência a mais de 500 personagens, espalhado em 31 obras, traduzido em 48 línguas em mais de 52 países, descreveu tão bem o povo e seu espaço, como nos diz Luciano Suassuna: como o caixeiro viajante que, a cada passagem vê uma nova cidade, Jorge Amado somava tipos a cada livro, reconstruía o País e sua brasilidade. (SUASSUNA, 2001:
Capitães da Areia, publicado em 1937, foi apreendido pela polícia e queimado em praça pública, retornando às livrarias apenas na final da ditadura de Vargas em 1944. O ambiente é caracterizado pelas ladeiras e casarões da cidade do Salvador. Os personagens são menores abandonados que vivem num velho trapiche, cujo líder do grupo é Pedro Bala. Ao final da narrativa, os capitães da areia tomam consciência da situação geral do País, encaminhando - se para a luta política. Em uma linguagem crua e lírica, Jorge Amado descreve o dia - a - dia do grupo, denunciando as desigualdades sociais, mostrando ainda, a desonestidade das classes dominantes e a sensibilidade das crianças marginalizadas. Nesse contexto, há a relação da linguagem com a ideologia e a história de vida dos personagens do romance, conforme nos diz o próprio Jorge: histórias apreendidas do povo, vividas numa vida ardente e recriadas, depois para entregá-las novamente ao povo de onde elas vieram. (CURRAN, op. cit.)
Qual seria a linguagem dos capitães da areia, sem família de laços sangüíneos, sem perspectivas de vida de adolescentes, a não ser os furtos e as carreiras pelas ruas estreitas e ladeirosas da velha Cidade da Bahia, lutando pela sobrevivência? Nada mais do que uma linguagem de uma classe subalterna que praticava atos ilícitos, forçada pelas condições da vida, usando uma linguagem adequada à delinqüência, como nos mostram os fragmentos extraídos do romance:
Desperta corneta dá o fora antes que lhe leve para o xilindró
Empurrei por quinhentão num coronel cheio da nota.... o bicho engoliu sem gritar.
Agora tenho uma moreninha do balacubaco.
Diz que agora vocês têm uma putinha lá pra todo mundo..
Dobre a língua, filho da mãe.
Consultando o dicionário e analisando a linguagem a partir da identidade social do personagem, percebemos nitidamente as diferenças de fala correlacionadas com a estratificação social: corneta - individuo intrometido e trapalhão; xilindró - cadeia; do balacubaco: excelente, ótimo (pessoa ou coisa) (FERREIRA, 1986).
Encontramos também as expressões: engoliu sem gritar: aceitar negócios de maneira pacífica, pra todo mundo: na linguagem popular, pra Deus e o mundo; dobre a língua: respeito e cautela no que dizer.
Embora a narrativa de Capitães da Areia apresente uma linguagem caracterizada como vulgar, percebemos nela também uma linguagem contextualizada no momento sócio - histórico da época (as greves operárias) o que nos revela o capítulo UMA PÁTRIA E UMA FAMÍLIA, (AMADO, op. cit.) no qual, encontramos a prática revolucionária do personagem Pedro Bala, conforme o sentido das expressões: Jornais de classe: as associações trabalhistas da época, operários, bancários, metalúrgicos; Inimigo da ordem estabelecida: ordem de um estado capitalista; Bocas impedidas de falar: a opressão para não transgredir as normas que impediam os manifestos populares; Colônia: verdadeiros campos para onde eram levados os presos políticos. (ABDALA JR., 1999)
Tendo em vista os fragmentos acima, dividimos a linguagem dos capitães da areia em dois momentos: os usos lingüísticos dos pobres marginalizados, a exemplo das gírias, e calões e a linguagem nos movimentos reivindicatórios, chegando a duas conclusões: A linguagem reflete muito na consciência política do usuário, no seu papel como agente da história e na sua função social, a partir do perfil e da consciência de cada integrante dos “capitães da areia”, contextualizando - os na situação sócio - política da época, a exemplo Pedro Bala, e o caráter duplo da linguagem: a opressão, quando as forças repressoras tentavam calar a boca daqueles que clamavam por justiça, e a liberdade - quando Pedro Bala, através de sua ideologia e sentimento de parentesco, usando o mesmo padrão lingüístico, adquire uma grande família. A luta pela vida é, para ele, uma prática revolucionária e uma perspectiva existencial, ao lembrar da morte de seu pai em conflito com a polícia durante uma greve. (ABDALA JR., op. cit.)
Em Gabriela, cravo e canela, Publicada em 1958, o ambiente é a região cacaueira da Bahia - Ilhéus na década de 20, período áureo do cacau . Os personagens são de diversas classes sociais e espaços geográficos, havendo, portanto, as variações lingüísticas nos planos diastrático e diatópico.
As classes subalternas eram vistas pela alta sociedade de forma marginalizada, por exemplo a discriminação das esposas dos coronéis com as mulheres da vida, como se verificam no romance as críticas à casa de Glória, amante do coronel Coriolano, por ser localizada em frente à Igreja de São Sebastião.
Em relação às mulheres da vida em Gabriela, Amado usa várias denominações, conforme nos mostra Andrade (2003) putas, quengas, manceba, filial, prostitutas, cabrocha, sirigaita, rameiras etc. (ANDRADE, 2003: 50-62)
Havia uma certa discriminação entre as mulheres do Bataclan - famoso cabaré liderado por Maria Machadão e os cabarés das ruas de Canto. O primeiro era freqüentado pelos coronéis do cacau. Lá, as mulheres eram tratadas de damas ou raparigas. Os outros, pelos trabalhadores das roças do cacau e jagunços dos coronéis. As mulheres eram chamadas de putas, rameiras de baixa extração, mulheres públicas, quengas etc.
Considerando a lexia quenga, podemos ver a confluência dos vários dialetos na região, graças ao processo migratório no auge da economia cacaueira. Na narrativa, registramos apenas uma ocorrência desta palavra, usada pelo personagem Clemente (ex-amante de Gabriela). O uso da palavra quenga, no romance, nos mostra um dado importante na língua de natureza diatópica e diatrástica. Analisando o Atlas Prévio dos Falares Baianos e o Atlas Lingüístico de Sergipe, ambos elaborados por Nelson Rossi e equipe, registra - se, na região cacaueira, a lexia quenga, como também em vários pontos de Sergipe.
Considerando a língua a partir do usuário e tendo em vista o uso da referida palavra em Sergipe, podemos considerar que a palavra quenga tenha sido difundida na região cacaueira pelos sergipanos, a exemplo do personagem Clemente, trabalhador de roça de cacau, pertencente a classes subalternas. Isso nos leva a ver a interferência dos fatores sócio - econômicos e culturais na formação lingüística de um povo.
Em Tieta do Agreste (1977), o ambiente é uma cidade do interior, fronteira Bahia com Sergipe. Contornada pela beleza do rio Real e brancas nuvens de Mangue Seco, a cidade de Santana do Agreste ainda conserva os provérbios, tesouro lingüístico na sabedoria popular, como por exemplo:
Não existe fumaça sem fogo (AMADO,.2001: 64)
Quem engorda o porco é o olho do dono (op. cit., p. 226)
Deus dá nozes a quem não tem dentes (op. cit., p. 205)
Por fora Senhor São Bento, por dentro pão bolorento. (op. cit., p. 112)
Nesta história tem gato escondido (op. cit., p. 287)
Não tem com que comprar um gato morto (op. cit., p. 312)
Meta a mão na cabaça quem quiser, não eu (op. cit., p. 335)
Quando os urubus aparecem é sinal de carniça. (op. cit., p. 392)
Está no mato sem cachorro (op. cit., p. 524)
Pregar sermão em outra freguesia (op. cit., p. 291)
Qual seria o dialeto de um povo distante do conhecimento formal, que só conheceu apenas as asperezas da vida, como o personagem Bafo de Bode, os pescadores e as meninas da casa de Zuleika Cinderela, famosa prostituta, dona de casa de mulher dama, responsável pelo início dos garotos de 12 a 13 anos na vida sexual. Zuleika, segundo Osnar, o boêmio da cidade, era quem concedia a maioridade aos homens de Agreste. (AMADO, op. cit., p. 476)
A população ouvia os gritos do bêbado Bafo de Bode. A ele, restou apenas a cachaça e a vida alheia: Vamos pôr o cu no seguro que a Pomba do Divino está solta em Agreste (AMADO, op. cit., p. 548). Com essas palavras, Bafo de Bode, através de seu conhecimento de mundo e sua crítica, mostra a revolta causada pela chegada da tecnologia na cidade. Bafo de Bode era o “Boca do Inferno de Agreste” (grifo meu). Anunciava o fió-fó das vitalinas (as virgens), chamando - as de encruadas. Esta metáfora nos permite uma associação da linguagem do personagem com o poeta barroco Gregório de Matos.
A mulher da vida era excluída da vida social, recebia as denominações: quenga, meretriz, rameira etc. Tais lexias podem ser comprovadas através da consulta à carta 112 do Atlas Lingüístico de Sergipe (MOTA, 1987).
Considerando as denominações para as mulheres da vida em Tieta do Agreste, encontramos um dado importante para o estudo do léxico: o uso da palavra chiba (AMADO, 2001: 70) com referência à cabrita, metáfora usada pelos homens para a personagem Tieta.
No extremo sul de Portugal, há o termo xibo referindo - se à cria da ovelha, substituindo cabrito (CARDOSO, 1988: 127-133). Com isso, podemos considerar dois aspectos de natureza histórico - lingüística importantes para o estudo em questão:
1. A extensão semântica da palavra, graças a motivações culturais presentes na vida homem: relação terra e homem. Tieta - pastora de cabras, e a palavra chiba passa a ser sinônimo de mulher. Havendo assim, uma associação ao bode Inácio, famoso bode e responsável pela reprodução do rebanho caprino de Zé Estevão;
2. O processo histórico: uma palavra conservada no léxico brasileiro, trazida talvez pelos colonizadores.
A língua é um fato social, é o meio imprescindível na comunicação da comunidade. Por isso, está associada às relações culturais, sociais, geográficas etc. Se a sociedade fosse homogênea, as palavras teriam sempre o mesmo valor semântico, mas na aparente homogeneidade de uma sociedade, existe heterogeneidade dos grupos sociais nos diversos segmentos. Cada grupo, no seu dia - a dia, toma o termo geral da língua e insere no contexto sócio - cultural, transformando - a.
A obra de Jorge Amado revelou para o Brasil e o mundo a adequação da língua das classes estigmatizadas pelas elites culturais, descrevendo o modo de viver de uma gente que ansiava por liberdade.
O vocabulário, considerado como obsceno, encontrou aproveitamento no uso da língua, marcado pelos fatores situacionais. Isso foi uma das razões que mais influenciaram para a repercussão das críticas acerca da linguagem amadiana. Eram palavras conhecidas por todos e que apareciam com naturalidade nos textos, reproduzindo o falar das classes menos favorecidas.
Jorge Amado deu autenticidade à língua, especialmente na modalidade oral, não vacilando em quebrar os preconceitos. Nos tempos de perseguição e opressão à expressão do pensamento, Jorge Amado, munido de ousadia e consciência política, retratou fielmente os costumes, dando expressão literária ao linguajar do povo.
Vale - nos revistar o pensamento de Érico Veríssimo quando, em entrevista a Lígia Fagundes Teles - Manchete - Rio, 11/4/1970 (apud TAVARES, 1982), falou acerca do palavrão:
Tortura é e sempre foi a coisa séria e importante do que essas imagens e palavras que se convencionou chamar pornografia. Mais ainda: a verdadeira pornografia, a legitima obscenidade é a maldade do homem contra o homem, a violência, a guerra, o genocídio.
A obra de Jorge Amado não descreve apenas a vida do povo humilde da Bahia, mas consiste, acima de tudo, em uma revelação de classes sociais marginalizadas e cujos falares estigmatizados. Como disse Antonio Cândido, a obra de Jorge Amado é “uma ida ao povo.” E nessa ida, encontramos:
O falar dos pais e mães - de - santo em cultos aos orixás, quando sofriam a perseguição imposta pela polícia nos terreiros de candomblé;
O falar dos grevistas, exigindo respeito e dignidade humana, liderados por Pedro Bala;
O falar dos capitães da areia que, mais tarde, ressoaria na Candelária e em outras partes do Brasil;
O falar das prostitutas, vítimas da sociedade preconceituosa, em que a mulher ainda é explorada;
O falar dos saveiros, tangidos pelas águas da Baía de Todos os Santos, despedindo - se das mulheres no cais;
O falar de muitas Grabielas, Terezas e Tietas que, com guerra, conquistaram os seus espaços no contexto social;
O falar autoritário dos coronéis em Ilhéus;
O falar sangrento na disputa pelas terras do cacau;
O falar do negro discriminado que aqui chegou e constituiu grande parte de nosso patrimônio cultural;
Todos os falares da gente simples e humilde que, vivendo de forma trágica, sem esperança e opressora constituiu os personagens vivos e atuantes. É assim que se constitui a obra de Jorge Amado: Escritor do povo, mostra o que povo de tem bom, inspirado pelo povo e escreve para o povo.